Fonte: www.joaonunes.com. Texto escrito pelo roteirista e escritor João Nunes, publicado em seu site em 26/06/2012.
João Nunes é natural de Portugal, hoje morador de Manaus.
Roteirista de talento, os posts publicados em seu site abordam a carreira de roteirista audiovisual, sempre com muita informação e humor. Para aqueles que nunca leram seus textos, lembramos que o autor utiliza terminologias portuguesas, como "guionista" ao invés de "roteirista", "guião" ao invés de "roteiro".
Vamos ao texto!
"A tentação de escrever de graça
Quem começa a tentar singrar na profissão de guionista mais tarde ou mais cedo vai ser desafiado a escrever de graça.
As justificações serão sempre diferentes; a resposta, pelo contrário, deverá ser sempre a mesma: “Não, obrigado; não posso dar-me ao luxo de trabalhar sem ser pago”.
Contra mim falo, pois já alinhei em situações dessas mais de uma vez. Deixem-me contar duas dessas experiências.
Primeiro caso
Um amigo, realizador de publicidade muito talentoso, convidou-me há alguns anos atrás para uma conversa acerca de um projeto de cinema.
O seu objetivo era apresentar um guião, escrito a partir de uma ideia sua, a um importante produtor português. O problema é que não tinha tempo, nem vocação, para o escrever por si mesmo.
Infelizmente também não tinha possibilidade de pagar a um guionista para o fazer.
Devia ter-me escusado imediatamente, mas por simpatia pedi-lhe para me explicar a ideia. Era apenas um esboço, muito crú, mas alguns dos seus elementos mexeram com a minha imaginação.
Passados alguns dias avancei com uma contraproposta: não escreveria um guião mas se ele estivesse interessado podia desenvolver um tratamento.
É óbvio que ele aceitou. O que é que tinha a perder?
Começara a negociação apenas com uma ideia incipiente e ia sair dela com um tratamento pronto a apresentar a um produtor, sem gastar mais do que a bebida que me pagou.
Escrevi o tratamento, que me deu muito gozo e satisfação, mas também muito trabalho. Enviei-o.
Passados alguns dias, recebi uma pequena montagem em vídeo com uma espécie de teaser-trailer (ele é um tipo muito talentoso, como já referi).
Fiquei entusiasmado: “Wow, isto vai ser bom”.
E depois, mais nada.
Tanto quanto sei o projeto morreu sem sequer ter sido apresentado ao tal produtor.
Segundo caso
Há três anos atrás tive uma ideia para uma mini-série de televisão. Modéstia à parte, era uma boa ideia.
Por minha conta e risco desenvolvi os tratamentos completos de todos os episódios. Quando fiquei satisfeito com o resultado, apresentei-o a um produtor.
Adorou o projeto, que encaixava quase perfeitamente nos seus planos para uma co-produção importante.
Só faltava o “quase”.
Para ficar perfeito seria preciso introduzir algumas alterações no tom e enredo da estória. Estava disposto a fazê-las?
Apesar de não muito satisfeito com o rumo sugerido aceitei fazer as mudanças pedidas. Às quais se seguiram mais algumas sugestões, e depois ainda outras indicações.
Finalmente decidi parar de escrever, o que coincidiu com a informação de que tinha havido um contratempo na co-produção: o projeto tinha sido suspenso, e só eu ainda não sabia de nada.
Cada um é como cada qual
Não estou aborrecido com nenhum dos meus interlocutores nestas duas estórias.
Limitaram-se a aproveitar a minha disponibilidade para trabalhar de graça. Qualquer pessoa no lugar deles faria o mesmo.
A culpa não foi deles; foi minha.
No primeiro caso cometi o erro de me deixar apaixonar pela ideia, quando não havia condições para pagar o meu trabalho. Aparentemente, apaixonei-me até mais do que o meu amigo.
No segundo caso, o erro foi ainda maior. Aceitei fazer alterações a um trabalho meu — ainda por cima alterações em que não acreditava completamente — sem ter sequer um contrato assinado.
Porque é que os produtores agem assim?
Porque podem.
Porque nós, os guionistas, os deixamos.
Porque são humanos.
Qualquer produtor que se preze tem, em cada momento, vários projetos em desenvolvimento. O seu entusiasmo em relação a esses projetos vai variando com o tempo, em função de uma imensidade de fatores.
O projeto favorito num determinado momento pode, três meses depois, ter sido arrumado numa gaveta e esquecido.
Mas há outro fator ainda mais importante, que deriva da psicologia humana.
Quando estive em Angola pela primeira vez trabalhei com umaONG que agia na área da prevenção da AIDS. Uma das coisas que me surpreendeu foi que, nas suas ações de campanha, vendiam os preservativos por um preço irrisório.
Quando perguntei porque não os ofereciam, já que o preço era tão baixo, deram-me uma explicação que nunca mais esqueci: sempre que ofereciam os preservativos as pessoas não lhes davam valor e não os usavam.
Pelo contrário, quando pediam algum dinheiro pelos preservativos, mesmo que fosse muito pouco, aumentava a sua credibilidade e a probabilidade de serem usados.
Pensemos nos nossos guiões da mesma forma.
Quando os oferecemos estamos, na prática, a tirar-lhes o valor. E, não tendo valor, a sua probabilidade de virem a ser utilizados diminui muito.
Se um produtor tem três ou quatro projetos em curso, e só investiu dinheiro do seu bolso num deles, a qual é que vai dar mais atenção: aos que lhe caíram no colo, de graça e sem esforço? Ou àquele em que está a pagar juros ao banco?
Pior ainda — trabalhando sem remuneração estamos a desvalorizar-nos a nós mesmos. E se nós não nos valorizamos, porque outros o hão de fazer?
O custo de oportunidade
Há uma outra razão para não escrever de graça. Seth Godin refere-a num artigo de ontem: é o custo de oportunidade.
As horas que passamos a trabalhar sem remuneração são horas em que não estamos a trabalhar em projetos remunerados. Ou, pelo menos, a trabalhar em projetos nossos, que mais à frente nos poderiam trazer dividendos.
São, também, horas em que não estamos com a nossa família, com os nossos amigos, ou a cuidar de nós. Qual o valor que damos a isso?
Numa época em que todos, de uma forma ou de outra, vendemos o nosso tempo, este torna-se a moeda mais preciosa.
Como Seth Godin salienta, dizer “não” tem um custo, mas dizer “sim” também tem.
Como agir então?
O princípio é simples: só trabalhe de graça quando está a escrever para si próprio, por sua iniciativa, num projeto de seu interesse.
Tudo o que não encaixe nesta definição é uma encomenda.
“Preciso de uma sinopse, uma coisa simples, só duas ou três páginas” — é uma encomenda.
“Tenho este guião, que é muito bom, mas queria dar-lhe uma revisãozinha; fazes isso num instante” — é uma encomenda.
“Adorei o teu projeto e acho que vou ficar com ele. Mas gostava de ver umas pequenas alterações para ter mesmo a certeza” — é uma encomenda.
E uma encomenda de escrita nunca deve ser aceite:
1. Se não houver remuneração em cima da mesa;
2. Se não houver um contrato escrito e assinado pelas duas partes.
O valor da remuneração pode variar muito; as modalidades de pagamento e os prazos também; os termos do contrato, idem idem.
Mas nunca aceite trabalhar por encomenda sem remuneração e sem contrato.
E não pode haver excepções?
Claro que sim. Para tudo na vida há excepções.
Se fez o curso de cinema com um amigo produtor, ambos estão a começar as carreiras, ele tem ainda menos dinheiro do que você, e os dois adoram o projeto — por amor de Deus, escreva o guião.
Se é um filme independente ultra low cost, em que ninguém, do realizador ao assistente de produção, vai ser remunerado — vá na fé e escreva de graça.
Se está a namorar o realizador de uma curta-metragem (uma longa já é outra conversa…), não seja egoísta — escreva o guião de que ele precisa. O amor é lindo.
Mas, mesmo que não haja dinheiro envolvido, faça sempre um contrato.
Quando o guião for produzido, o filme indie der dinheiro, a curta começar a ganhar prêmios em festivais, vai agradecer-me por este conselho.
Um comentário:
Amei suas colocações sobre trabalhar de graça. Elas sevem não só para os roteiristas, mas também para várias profissões "criativas"!
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