27 agosto 2007

Braga leva novela ao limite da forma

Folha de S. Paulo, 26 de agosto de 2007 - Ilustrada


Braga leva novela ao limite da forma, diz psicanalista
Para Tales Ab'Sáber, "Paraíso Tropical" realiza "algo novo" no gênero;

filósofo Janine Ribeiro acha que novela muda conduta
Novelista afirma que procura "mostrar o Brasil real, muitas vezes com ironia" e se diz "prosa" com elogios de acadêmicos

Alessandra Negrini, que na atual novela das oito representa as gêmeas Paula e Taís
Alessandra Negrini, que na atual novela das oito representa as gêmeas Paula e Taís
RAFAEL CARIELLO
LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Gilberto Braga é o queridinho dos intelectuais.Mais do que os pequenos golpes da prostituta Bebel ou as vilanias de ricos e arrivistas, alguns dos principais pensadores da sociedade brasileira vêem nas novelas do autor de "Paraíso Tropical" uma representação sofisticada do país.

Considerado o melhor novelista atual do Brasil por acadêmicos entrevistados pela Folha, o criador de "Dancin" Days", "Vale Tudo" e "Celebridade", entre outros sucessos, é elogiado por seu diálogo com a tradição cinematográfica norte-americana e a ficção de Nelson Rodrigues.

"Acho ele melhor do que os outros autores", diz Sergio Miceli, professor de sociologia da USP, que vê o interesse de sua dramaturgia na "aposta em mostrar o lado menos bonzinho, mais perverso" dos personagens. "Ele tem um lado de contra-senso, de um sentido menos domesticado", diz.

Miceli conta que havia parado de ver novelas anos atrás, mas que foi fisgado por "Paraíso Tropical" por causa de sua mulher. "Ela se ligou na novela e acabei me ligando também."

O sociólogo aponta problemas na trama atual, como personagens estereotipados, distantes da ambivalência maior que, para ele, predominava em folhetins anteriores de Braga.

Outros são classificados por ele como "bastante simpáticos", mesmo se caricatos, caso do executivo-vilão interpretado por Wagner Moura. "O Olavo não pode ver uma mulher que já vai e marca o quarto; é de uma animação! É inacreditável. O personagem tem um lado completamente caricato, é um herói de quadrinhos. Como você pode ter um peru em prontidão permanente dessa maneira?", diz, bem-humorado.

Para o psicanalista Tales Ab'Sáber, Braga é o "grande inventor moderno" do gênero telenovela e o levou "até o limite extremo da sua forma". Por ter feito tanto, a seu ver, Ab'Sáber chega a comparar o salto qualitativo atingido pelo autor em "Vale Tudo" (1988) com o nível atingido por Machado de Assis em suas obras de maturidade.

Elite cínica e violenta

"Não foi por acaso, portanto, que ele deu o seu próprio salto mortal, como ocorreu com Machado de Assis cem anos antes no registro da alta literatura". Segundo ele, em "Vale Tudo", Gilberto Braga "passa a olhar o Brasil do ponto de vista radical de uma elite beneficiária da vida nacional estagnada, que opera com liberdade cínica e violência sistemática a sua relação com uma classe média ambígua ao extremo em relação à ordem de exploração e ao descompromisso do grande dinheiro por aqui".

Isso significou, segundo Ab'Sáber, que "a novela brasileira, finalmente, estava à altura da história". "Gilberto Braga é de fato o único dramaturgo da TV brasileira que pode ter no Brasil o seu personagem", diz.

O novelista, em entrevista à Folha, disse que tenta simplesmente "mostrar o Brasil real, muitas vezes com ironia".

Ab'Sáber vê em "Paraíso Tropical" a realização de "algo novo" na dramaturgia. "Nessa novela, os vilões são impotentes, e a cada ato de interesse imoral rumo ao dinheiro -o sujeito oculto de toda a trama- corresponde uma imediata frustração. Nada se realiza nos planos gerais de supremacia de quem os tem. No plano das novelas, isso é muito novo", diz.

"Creio que se comenta aí o estado de moratória social e de crise de orientação das elites, que têm um mal-estar com o fato de estarem condenadas ao país degradado no qual vivem em pleno benefício, além de se sentirem punidas com a estagnação histórica do país, que elas mesmas promoveram."

Melodrama temperado

Menos taxativo que Ab'Sáber, o professor da Escola de Comunicações e Artes da USP Ismail Xavier elogia Braga. "Como gosto pessoal, acho ele o mais interessante. Mas não quero fazer disso um juízo de autoridade", afirma.

"Gilberto Braga demonstra claramente que é um espectador do cinema clássico americano. E faz a ponte entre a cultura brasileira e esse cinema industrial clássico", diz o crítico, que aponta também relações com Nelson Rodrigues.

Essa influência do cinema, complementa, "aparece principalmente na microcena, nos diálogos, na maneira como se comportam as pessoas".

Não se trata de realismo, diz, já que o esquema do melodrama -com temas morais marcados, vilões e mocinhos- permanece, mas de um uso do naturalismo do cinema americano como "método de interpretação" e de escrita de diálogos.

O professor de filosofia da USP Renato Janine Ribeiro, para quem "Vale Tudo" foi "a melhor narrativa de novela" a que já assistiu, diz não concordar com a idéia de que uma obra de ficção "retrate" uma realidade social qualquer. Ele afirma preferir pensar os efeitos que essa criação pode ter.

"É muito importante a exposição que ele faz dos vícios brasileiros. Uma parte da convicção que existe no Brasil de que algumas condutas são inaceitáveis se deve às novelas. É o papel da crítica social, de que algumas coisas são intoleráveis e devem ser contestadas de uma maneira muito dura, severa.

"O novelista, ao saber dos elogios, comentou: "Claro que fico prosa. Logo eu, que fugi da faculdade no segundo ano de Letras e me acho tão inculto...".

DE BILLY WILDER A JANETE CLAIR

Gilberto Braga comenta quem fez sua cabeça: "Sou muito influenciado pelo grande cinema americano, sim, por diretores como Billy Wilder [1906-2002], George Cukor [1899-1983], Alfred Hitchcock [1899-1980] e tantos outros. Nelson Rodrigues [1912-1980], sem dúvida, nosso gênio. E Janete Clair [1925-1983], naturalmente".

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