30 abril 2006

Conto #7 - A Vila do Asfalto Quente

Conto #7 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


A Vila do Asfalto Quente


Lorena tinha apenas 10 anos quando Douglas chegou. Era um dia radiante, com poucas nuvens no céu e um calor quase que insuportável. Sua avó, de pele quase negra de sol, parecia nem sentir os efeitos do calor estonteante. A mãe de Lorena não suportava isso, vivia reclamando do calor e do lugar em que moravam. Ela dizia que o asfalto da estrada em frente à sua casa só aumentava o “bafo” no ar que respiravam. O pai de Lorena faleceu antes dela nascer, pelo mesmo motivo que a mãe morreria anos depois, atropelamento de caminhão. A avó se consolava dizendo que pelo menos eles morreram perto de casa, mas Lorena não gostava desta idéia.
A cidade em que moram nem existe no mapa ainda, de tão pequena. Na verdade, nem chega a ser uma cidade, afinal de contas não tem igreja nem pracinha com coreto. O que ocorre é um aglutinado de casas na beira da estrada, construídas com restos de materiais de construção deixados pelos caminhões tombados, que liga o nada a lugar algum. Esse amontoado de casebres é conhecido pelas cidades vizinhas como a “Vila do Asfalto Quente”.
Pelo apelido percebe-se a Vila do Asfalto Quente não é vista com bons olhos. Isso porque muitos anos atrás, após uma rebelião no presídio da Cidade Grande, muitos presos fugiram para a longínqua região e se misturaram aos habitantes das cidades. Contudo, pouco a pouco, eles foram identificados e expulsos das mais diversas maneiras dos lugares em que haviam se estabelecido. Os moradores, de uma maneira ou de outra, acabavam descobrindo a origem dos maltrapilhos e queimavam-lhe os pertences. Como eram expulsos subitamente e acabavam ficando sem nada, a única saída era caminhar pela estrada.
Aos poucos foram se fixando ali e em alguns anos a Vila do Asfalto Quente já contava com mais de cinqüenta casas. Alguns diziam que a vila carregava o carma dos que iniciaram o povoado e todos os que morassem ali pagariam pelos pecados de seus antecessores. Mas Lorena não acreditava muito nisso. Ela gostava de morar na Vila do Asfalto Quente. Lá havia muito espaço para brincar, havia uma escolinha que acabara de ser inaugurada por um recém chegado e sempre apareciam pessoas com novidades excitantes.
As duas saíram cedo naquele dia. Elas vivem de vender as maçãs que trazem da Cidade Grande. A avó de Lorena sabe fazer uma “maçã do amor” que é infalível. Basta dar uma mordida e oferecer um pedaço para a pessoa amada. Se ela comer da maçã, suas almas se unirão para sempre. Pelo menos é isso que dizem no povoado. Elas tinham um longo caminho a percorrer e Lorena ainda deveria ir à escola. Ao saírem de casa se depararam com Douglas enfurecido ao lado de seu belo carro vermelho que, agora, possuía um motor italiano de oito cilindros completamente fundidos.
Ele estava xingando um aparelho preto que colocava a todo instante no ouvido. Apertava ele com a ponta do dedo em diversos lugares e tornava a colocar no ouvido. Esperava um pouco e gritava. Lorena e sua Avó ficaram impressionadas com a cena. Na verdade estavam passadas de medo. A avó puxou Lorena para trás de si, que não conseguia tirar os olhos do belo Douglas ardendo em nervos. A raiva dele era impressionante. Sua face estava corada pelo excesso de sangue que jazia nos vasos de sua cabeça. Os nervos saltavam e os olhos pareciam ter vida própria.
Lorena e sua Avó não se mexiam. Elas ficaram paralisadas por alguns minutos com a esperança de que Douglas não as percebesse. Mas os olhos rápidos do bem sucedido empresário não se deixaram enganar. Um frio impressionante percorreu a espinha da velha, que quase teve um colapso, no momento em que sua vista encontrou com a de Douglas. Era muito cedo, o dia acabara de amanhecer e não havia ninguém por perto para ajudar.
Douglas avistou a velha, guardou o aparelho preto e passou a mão na face como quem limpa a sujeira do rosto. Andou calmamente até a senhora e perguntou se havia algum telefone na região. A resposta negativa o paralisou. A velha ofereceu uma maçã e aconselhou ele a se acalmar para não ter um “troço”. A explosão de raiva fez com que ele expelisse um grito dos mais altos que já havia dado em toda sua vida. Douglas gritou por quase dois minutos inteiros acordando toda a cidadela. O ruído da raiva só parou quando o ar de seus pulmões acabou, fazendo-o desmaiar.
Lorena e sua Avó o trouxeram para dentro de casa. Um curandeiro da Vila foi acionado para cuidar do homem. Ele ficou três dias inteiros deitado na cama sem se mexer. Como suas roupas já cheiravam muito mal, resolveram trocá-lo. O belo terno serviu de matéria prima para o conjuntinho que fora confeccionado e dado de presente à Lorena em seu aniversário de onze anos. Quando acordou, Douglas se deparou com a receptividade de Lorena e daquela velha, que por algum motivo resolvera cuidar dele. O excesso de stress fez com que seus neurônios fundissem da mesma maneira que o motor ítalo de seu carro. Ele já não sabia de onde viera e nem quem era. Sabia apenas seu primeiro nome e que agora morava na Vila do Asfalto Quente.
Douglas ajudou a reformar o casebre da Velha e adotou Lorena como uma irmã. Levava-a para cima e para baixo, ensinava matemática e o abecedário e ajudava a velha na distribuição das maçãs. Suas aptidões intelectuais concederam-no o cargo de diretor da escolinha da Vila, cargo que ele administrou com muita responsabilidade. Em cinco anos já havia ensinado três professores e contava com mais de setenta alunos, dentre crianças, velhos e adultos, sempre separados em salas diferentes de acordo com a faixa etária.
A prosperidade da escolinha e o espírito de liderança fizeram com que ele se tornasse o novo prefeito da Vila do Asfalto Quente. Sua primeira ação como representante do poder executivo foi controlar a entrada de visitantes, principalmente os que vinham pela estrada. A imagem da comunidade começou a melhorar muito após esta atitude. Muitos larápios não poderiam mais se refugiar na vila, que agora começava a se tornar um lugar melhor. A maioria dos moradores gostava de Douglas, mas alguns o rejeitavam. Afinal de contas, como pode alguém que chegou pelo asfalto quente, vir aqui, mudar tudo e querer barrar os que vêm da estrada. Muitas coisas boas chegaram na vila pelo asfalto. Tijolos, telhas, cimento, areia, potes e potes de leite em pó, um carregamento inteiro de tuperware, das mais diversas cores, e até algumas figuras ilustres como Douglas. Não se pode abrir mão do principal meio de comunicação com o resto do mundo, só porque meia dúzia de usurpadores apareceram nestes anos todos.
Apesar da resistência de alguns, Douglas conseguiu se estabelecer como prefeito e organizou muita coisa na cidade. A Avó já era a maior vendedora de maçãs do amor da região, sem precisar sair de casa, e Lorena era a mulher mais cobiçada da cidade no auge dos seus vinte anos. Os casebres foram desaparecendo e dando lugar a casas mais resistentes construídas com material doado pelas cidades vizinhas. Douglas efetivou bons contatos no meio do nada.
Conforme estabelecido no primeiro ano de mandato, todo visitante que chegasse pelo asfalto deveria comparecer no gabinete de Douglas e passar por uma aceitação pública na pracinha improvisada. Se os habitantes aceitassem, o visitante poderia ficar. Antes da votação, Douglas fazia uma entrevista com o requerente e discursava aos demais a procedência do visitante. Muitas figuras passaram pela pequena praça, a maioria fora rejeitada.
Hoje Douglas terá de apresentar Carlos, que chegou de carro importado e foi encaminhado até o gabinete por Lorena. Eles se conheceram em uma festinha da cidade vizinha e estão perdidamente apaixonados. Carlos quer ter o direito de visitar Lorena aos finais de semana, mas para isso precisa do aval dos moradores da cidade. Douglas o interroga por quatro horas inteiras. Além de saber mais sobre o visitante ele precisa descobrir o que realmente quer com sua irmã. A velha o acha lindo e torce para que case com Lorena, afinal de contas ambos comeram a maçã.
Douglas acaba gostando do nobre rapaz e ao final da entrevista o convida para tomar “um quente” no bar da Vila, antes de apresenta-lo à população. “O quente” é um destilado de cana engarrafado e curtido com escorpiões. Bebida característica da Vila do Asfalto Quente, possui um sabor único. Durante a conversa de bar, Carlos recebe uma ligação em seu moderno aparelho celular. Douglas fica estonteado com a novidade. A ligação cai e Carlos explica que o sinal aqui é muito ruim. Ele caminha para perto de seu carro vermelho estacionado à beira da estrada na esperança de conseguir algum sinal.
Aperta uma série de teclas, coloca o aparelho na orelha, volta a apertar as teclas, estica uma antena, torna a colocar na orelha, fala algo, mas não obtém resposta. Neste instante Lorena pensa já ter visto esta cena antes. Douglas levanta perplexo. Caminha para o meio da estrada fitando o rapaz. Permanece ali, no meio do asfalto, olhando para todos como se fossem desconhecidos. Sua face fica corada devido ao volume de sangue que preenche rapidamente as veias de seu rosto. Os nervos parecem mais protuberantes do que o normal, o suor melado escorre quente pela testa, seus olhos ardem em chamas pelas veias estouradas.Uma pequena multidão se forma na beira do asfalto, todos gritando e gesticulando muito. Os tímpanos de Douglas já estouraram de tão alta pressão. E é surdo, com os nervos à flor da pele e com a face deformada pelos movimentos involuntários dos músculos que ele levanta os braços contraídos e solta o grito mais alto de sua vida. Grita da maneira mais grave que já havia gritado antes. O som da expressão de sua raiva só é cessado quando seus pulmões se enchem do sangue que penetrou através das perfurações ocasionadas pelas costelas quebradas no impacto com o pára-choque do caminhão-tanque.

Conto #8 - Destino

Conto #8 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


Destino


Douglas voltava para casa com certa nostalgia em seu coração. Aquela canção do Roberto tocando no rádio, lhe embalava recordações da sua juventude. " Aquela calça desbotada ou coisa assim, imediatamente você vai lembrar de mim..." Onde estaria Maria Flor, seu grande amor?
Começaram a namorar durante a copa de 70. Maria Flor, tímida e bela, de cabelos castanhos e encaracolados, foi amor desde o primeiro momento. Viveram um conto de fadas. Juras de amor, carinhos no cinema, passeios de mãos dadas pelo parque, festas juntinhos e abraçadinhos, loucuras de amor, o desabrochar de uma mulher, o renascer de um novo homem. Todo mundo falava: nasceram um para o outro. Quase dois anos de namoro, Douglas planejava comprar o anel de compromisso na próxima semana.
Maria Flor deu um abraço gelado em Douglas, olhou com os olhos gélidos para a face dele e disse:
- Acabou.
A jovem saiu correndo. Ele ali paralisado, atordoado com que acabava de ouvir, tentando encontrar alguma lógica, ou razão para o que estava acontecendo ali naquele momento.
Ligou diversas vezes, fez vigília esperando que ela entrasse, ou saísse de casa. Mas durante uma semana, não a viu, ou ouviu alguma notícia a respeito de Maria Flor. Mas na segunda semana, soube que sua amada deixara a cidade ao amanhecer.
Douglas sentou em frente ao mar, e se pôs a pensar: Por quê meu Deus? Por quê ela me deixou?
Dez anos se passaram...
Mergulhou no trabalho para esquecer sua dor. Trabalhou muito durante dois anos, até abrir seu próprio negócio com 21 anos de idade, uma loja de Material de Construção. Os negócios prosperaram, João vivia para o trabalho. Aos 25 anos foi morar sozinho, mas nunca deixou de sustentar os pais, e pagar os estudos de sua irmã mais nova.
Imerso no trabalho, Douglas trazia em seu coração muita amargura. Nunca mais se apaixonou por ninguém. Usava as mulheres como objeto, não se envolvia emocionalmente com nenhuma. Sempre era visto como um companheiro distante, frio, que não demonstrava nenhum sentimento. Por duas vezes, estava prestes a se apaixonar novamente, mas se afastou para não sofrer, não ter que passar por uma decepção de amor novamente. Não suportaria a dor.
Durante os dez anos depois daquele abraço gélido de Maria Flor, Douglas havia se fechado para o amor. E exatamente no dia em que ouvia a canção do Roberto, fazia dez anos que recebera adeus sem nenhuma explicação.
Douglas continuava embalado na nostalgia de suas lembranças, quando ouve um barulho esquisito, e percebe que a caixa de marca do carro quebrou, sendo obrigado a parar logo depois da curva que havia feito, por sorte, perto de um pequeno vilarejo de pescadores.
Havia sinal de celular naquela região. Irritado, aciona o seguro do carro, e informa onde está. Depois, pega dinheiro, e documentos, tranca o carro, e se dirige para o vilarejo.
A poucos metros do local, foi abordado por uma senhora idosa, de olhos azuis, cabelos brancos, rosto marcado pelos anos de trabalho. Trajava um vestido de estampas cinza, pretas, e brancas, chinelos de palha, e um xale preto.
- Olá. O senhor veio atrás de sua resposta.
- Que resposta? - Douglas olha admirado para senhora. Vim apenas....
- A resposta que está dentro do seu coração, e você ainda não conseguiu encontrar.
- Meu carro deu problema aqui perto. Queria apenas um hotel, uma pousada.
- Aqui há apenas casas humildes. Venha até minha cabana, você deve está com sede.
- Na verdade estou sim. Fico grato. Já acionei o seguro, vai demorar algumas horas.
- Venha então. Você pode esperar na minha humilde cabana.
Enquanto caminhavam até a cabana, Douglas, ao mesmo tempo em que ficou impressionado com o que a velha senhora disse, não acreditava em destino e muito menos em sobre natural.
- Vamos, entre. – disse a velha senhora
Douglas entrou, e logo na entrada pôde observar a única fotografia da humilde cabana pendurada na parede.
- A senhora não me disse seu nome. – perguntou
- Ana. Vou pegar água para o senhor.
Douglas senta em uma cadeira de balanço. Observa o fogão a lenha, a vassoura de palha, o ferro a carvão, uma humilde máquina de costura. Levanta-se chega perto de uma cadeira de balanço preta que estava próximo a janela, e ao lado uma mesinha, com tabaco, um cachimbo velho, um pente pequeno, um canivete, e um chapéu estilo panamá.
- Era do meu marido. Francisco era o seu nome. – disse Ana emocionada.
- O que aconteceu?
- Morreu sentado nessa cadeira. Infarto.
- Tem quanto tempo?
- Dez anos.
- Por quê você mantém todas as lembranças dele pela casa?
- Assim o sinto mais perto de mim. No dia em que a saudade teima em trazer tristeza, fecho os olhos, e sinto a presença dele. Cada canto desse lugar tem uma história para ser recordada. Todo o fim de tarde, assisto o por do sol dessa janela, esperando o dia em que ele virá me buscar.
- Acho que se fosse comigo, isso iria me fazer sofrer ainda mais.
- Você traz uma grande mágoa no seu coração. Vejo tristeza em seus olhos. – disse Ana sentando na cadeira de balanço. Rodeado de tantas pessoas, e tão sozinho. Tanta dor desnecessária.
Douglas foi acometido de uma melancolia, solidão, e fragilidade. Estava ali parado ao lado de Ana totalmente exposto por palavras que o desvendavam tão bem. Permaneceu parado, diante da porta, olhando para o mar. Dez anos sem a doçura de um abraço terno, o encanto de um sorriso apaixonado, a magia de um beijo de amor, sem a sonoridade sincera de Eu Te Amo..
Sentia sua alma pesada, e com o sol se pondo, entendeu que não havia nenhuma resposta, que a esperança de um grande amor renasce, quando se segue em frente livre de mágoa, ressentimento, e não se abstendo da possibilidade de amar novamente.
- O medo não nos deixa superar obstáculos que podem ser vencidos. – disse Ana segurando sua mão.
Douglas foi correndo em direção ao mar lavar a alma.
Molhado, sentou na areia bem em frente à cabana, e ficou contemplando a beleza das ondas, sentindo a brisa em seu rosto. Havia renascido.
Ela vinha carregando uma cesta de frutas, os cabelos lisos negros, a pele alva como a da avó. Vestido estampado, solto, e leve modelando o belo corpo. Os pés descalços.
Quando os olhos se encontraram, o amor surgiu.
Ana sabia que o destino de sua neta Rosário começaria a se cumprir, quando Douglas aceitasse a maçã.

Conto #9 - Destino... existe?

Conto #9 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


Destino... existe?


O restaurante decorado em alto estilo estava vazio, um garçom fingindo limpar os copos olha distraidamente o grande empresário Douglas com ar de pena, em uma mesa próxima a janela olhando sem ver a paisagem lá fora, um enorme edifício com dizeres coloridos, ostentando luxo e bom gosto. Douglas leva lentamente o copo aos lábios, percebe que esta vazia, olha a garrafa vazia pede outra, seu olhar se perde fixando em algo que somente sua mente pode ver. O telefone torna a tocar. Mecanicamente ele atende.
Do outro lado a voz de sua mulher Dora soa estridente nervosa
- Douglas onde você esta?Já é a décima vez que te ligo nas ultimas duas horas.
Douglas responde friamente – estou chegando, se não ligasse tanto com certeza eu já estaria ai-.
A voz continua – não seja hipócrita, com quem você esta?O que esta fazendo?
Douglas coloca o celular ao lado do copo e continua a olhar o nada .Sua mulher continua falando -seu irresponsável, mulherengo, você viu os gráficos? Estamos tendo uma perda enorme em três das nossas filiais, se continuarem vamos fechar as portas logo, logo,e você fica ai escondido sem fazer nada, o que acontecendo?
Ele pega o celular – não esta acontecendo nada! Recoloca o tel. na mesa.
- Como não?Faz três meses que esta ausente, quase não aparece na firma, olha aqui Douglas se te pego com outra eu te mato, sabe que não aceito outra mulher na sua vida, você é meu somente meu ouviu?Estou contratando um detetive você vai me pagar !.
Ela desliga.
Ele continua a beber. Pega o celular olha a caixa de mensagens 35 mensagens de sua esposa, retira a gravata , o paletó do terno feito sobe medida, chama o garçom, Douglas lhe entrega o terno , a gravata, retira o relógio , a pulseira , o cordão de ouro fino , tira da carteira uma maço de notas e da ao garçom - é tudo seu –
O Garçom fica olhando penalizado, um homem tão rico e poderoso e tão infeliz.
Douglas o olha nos olhos – Roberto o poder é uma prisão, deixamos de viver preocupados com a sociedade, com o lucro, querendo sempre mais, não temos nem mesmo o direito de ficar a sós conosco mesmos, eu já fui como você, pobre, mas livre.
O telefone começa a tocar novamente ele pega o telefone desliga e entrega para o garçom, é tudo seu.
Sai do restaurante olha o prédio em frente, o manobrista se aproxima.
- Doutor quer que traga o carro ou vai para o escritório?
Douglas olha o manobrista com o mesmo olhar ausente
- Pode me trazer, por favor!
Alguns minutos depois o manobrista lhe entrega a chave ele entra no carro, o telefone começa a tocar, ele deixa tocando, liga o radio, uma musica suave começa a tocar. Douglas da um sorriso e diz numa voz de saudade - Estela
Ele dirige sem saber ao certo pra onde vai, fica rodando pelas ruas, o sinal abre, ele não vêem, outros motoristas começam a buzinar, olha para o motorista do outro carro, seu coração dispara, no outro carro uma loira lhe sorri, a covinha que se forma próximo aos lábios lhe chama a atenção, pois deixa a mostra um pequeno ponto negro bem no meio, Estela, os carros continuam a buzinar ele meio perdido, o carro ao lado vai embora, tenta segui-lo, mas se perde sem saber pra onde foi.
Novamente o tel. tocando. ele começa a falar sozinho.
- Dora nós ate que poderíamos ser felizes, se não fosse seu ciúme doentio, se pudesse me dar um filho para que cuidasse da nossa empresa, se me deixasse respirar, chega Dora não agüento mais, ver você 24 horas por perto, ver você vasculhando meu sentimento e meu pensamento, Estela, como teria sido minha vida com você?Com certeza seria mais feliz, devia ter voltado e me casado com você, mas Dora era a mulher ideal, ambiciosa como eu, éramos iguais, achei que os anos me faria te esquecer, o grande e único amor que tive na vida.
Douglas não percebe que entrou na rodovia, que esta começando a escurecer, perdido em seus devaneios.
Em certo ponto da estrada passa por cima de uma pedra o motor desliga
- Droga agora vou ficar aqui por mais de uma hora ate ele esfriar, meu fusca com certeza não me deixava mão, ultimo modelo, proteção contra acidente , balançou , desligou, nova tecnologia, que disparate tudo em nome do poder!
Ele sai do carro vê uma luz acesa numa pequena casinha a poucos metros da estrada
- estou com sede
Ele se dirige para o casebre uma senhora bem velha o atende com um sorriso.
- Estava te esperando meu filho!
- Me esperando? – ele se assusta
- Sim vi quando seu carro desligou, imaginei que tinha sede vamos entre.
Douglas entra na pequena sala se senta em uma cadeira em frente à mesa varias maças
A velha senhora o olha – Você me parece triste, vazio, buscando algo do passado, não esta feliz com seu presente?
- Ele se assusta – Como à senhora percebeu?
- Meu filho já vivi centenas de luas, aprendi a conhecer os olhos humanos, o olhar é a única coisa que é impossível disfarçar no coração humano, ele reflete as palavras que não são ditas, que se escondem no fundo da alma.
- Talvez tenha razão, tenho me sentido perdido e sozinho, o amor de minha esposa sufoca a ponto de me faltar o ar. tenho questionado como seria minha vida ao lado da única mulher que amei , simples, humilde, sua vontade era apenas de amar
- Porque a deixou? Pergunta à velha
- Porque eu queria mais, queria status, poder, ela não se ligava muito nessas coisas, ela queria amor, sexo, eu queria poder dinheiro, me pergunto se seria o executivo que sou hoje, se ainda seria feliz como antes.
Ela lhe estende uma maça - prove uma, são recheadas com morango recobertas com mel puro, você com certeza seria sim o executivo que é, pois sua ambição já era grande.
Agora vá seu destino lhe espera. leve essa maça com cuidado pode querer voltar .
Douglas sem entender coloca a maça embrulhada em um papel vermelho no bolso e sai em direção ao carro.
Ainda ouve a voz da velha mulher dizendo – se precisar voltar.
Ele entra no carro o tel. para de tocar. Começa a cantar, entra em uma rua, estranha, pois nunca a tinha visto, uma casa vermelha de janelas amarelas lhe chama a atenção e tem vontade de parar encosta o carro, nesse momento duas crianças de mais ou menos 8 e 10 anos abrem a porta correndo – Mamãe o papai chegou, o papai chegou!
Douglas se perde e as crianças o abraçam, tenta falar e não consegue, a porta se abre novamente e Estela sai uma roupa semitransparente, Douglas sente uma raiva repentina ao olhar a mulher ao mesmo tempo em que fala consigo mesmo – é um sonho, bebi demais, isso não esta acontecendo.
As crianças o levam pra dentro, Estela entra antes que ele alcance a porta, Douglas percebe que esta bêbado.
Na sala Stela o olha com ódio,
Douglas vê os braços e pernas da mulher cheias de hematomas, sua raiva cresce.
Seus pensamentos não batem com as palavras que diz.
Pensa em dizer – Estela que bom te encontrar, são seus filhos?Chamaram-me de pai... mas sua voz sai assim – que porcaria de roupa é essa? Como pode atender a porta desse jeito?Aproxima-se cambaleando, Estela se afasta,
- Não Douglas agora chega estou indo embora acabando de arrumar minhas malas, não agüento você, sua bebida, sua perseguição, é um doente isso que você é.
- Você não vai alugar nenhum, é minha esposa, é sua obrigação ficar comigo e cuidar de mim e de nossos filhos, da nossa empresa, -Ele se desespera – Meu deus o que estou falando o que esta acontecendo comigo!
- Chega Douglas o que você fez ontem não tem perdão, - jogando nele um jornal, eu não agüento mais tanta vergonha e humilhação,
Douglas olha o jornal perplexo, sua foto brigando um de seus melhores clientes.
Estela – Não vai ler Douglas? Atirou-se sobre o pobre coitado apenas porque ele foi gentil e estava amarrando minha sandália, porque estou com o braço quebrado que você quebrou no mês passado,
Douglas enlouquecendo não consegue falar, Estela sai, as crianças olham escondidas atrás da porta, um dos meninos se aproxima do pai.
- Papai não fica assim, gosto do senhor, mas quando bebe tenho medo que bata em mim como bate na mamãe!
O outro também se aproxima, mas fica de longe olhando- o com raiva – se o papai bater na mamãe de novo eu mato ele!
Douglas começa a chorar desesperado – O que esta acontecendo? isso aqui não é minha vida, esses não são meus filhos, essa dor, esse medo de perder! Essa mulher não existe, essa casa não existe, não estou bêbado o que acontecendo!
A voz da velha senhora lhe soa no ouvido – Filho tem nas mãos o destino que procurou,as respostas que queria ,siga seu caminho. boa sorte
A voz e a imagem se apagam – A velha foi a velha que me enfeitiçou, água que bebi , estou preso nessa vida, minha mulher Dora, minha casa, meus amigos, tudo se perdeu, nada existe mais! Nem mesmo controle emocional, já não sei mais o que digo,essas crianças tem medo , me odeiam, Stela me despreza, só falta descobrir que fiquei pobre!- ele da socos na parede, quebra os moveis as crianças fogem assustadas Stela entra segurando uma mala - Mando buscar as crianças.
Ele continua gritando - Você não vai embora, é a culpada de tudo isso que esta acontecendo, 10 anos te amando, te desejando, a culpa é sua.
- Stela decidida levanta a cabeça- Não à culpa é sua dez anos me vigiando, me atormentando, não me deixa viver, gasta horrores com detetives, vasculha a casa toda, nem trabalha, a empresa continua em alta, mas não por você, pelo Mauricio seu administrador, pois você não consegue ficar um minuto longe sem me perseguir, chega dessa vez é para sempre!.
- Você não entendeu - diz Douglas,- Essa não é minha vida, esses não são meus filhos!
- Sempre falou isso, tem razão é verdade não são seus filhos, você é louco doente.
Douglas ouve sua voz dizendo-Sou louco por você, tenho medo de te perder, você me trata como se não me conhecesse! Como se não me amasse mais, tudo que faço pra chamar sua atenção é inútil, só pensa na casa e nos seus filhos, não tem lugar na sua vida pra mim, vive de porta em porta, asilo, creches sei lá mais o que, mas prefiro te matar do que te perder .
Stela sai fechando a porta, ele sai atrás sem poder se conter, tentando se segurar, mas uma força o impele – maldita velha me devolve minha vida, devolva os dez anos que tomou maldita – enquanto entra no carro e sai em disparada atrás de Stela.
Ele vê o carro dela parado próximo ao banco, sai do carro e vê seu advogado aproximar de Stela o homem a abraça ele tira o revolver e da dois tiros em cada um .
Na calçada um pano vermelho, ele abaixa pega o pano enrola o revolver coloca no bolso esquerdo, senta na calçada e começa a chorar – Devolva minha vida, por favor.
Uma folha de jornal vem voando e cai em seus braços ele olha a manchete-PODEROSO EMPRESÁRIO MATA A SANGUE FRIO A MULHER E SEU ADVOGADO –
Douglas envia a mão no bolso direito desembrulha e leva a arma na cabeça , quando vê que era a maçã ,nervoso vai jogar a maçã no lixo – Maldita nem minha arma eu tenho mais , nem me matar eu consigo , começa a chorar - Dora me perdoe o que te fiz o que fiz a mim, a nós, Agora eu entendo você, eu tinha tudo que quis, mas não dei nada de mim, seu ciúme doentio fui eu que causei não tendo tempo pra você, não te dei atenção envolvido em ser o todo poderoso, não te amei como devia, te culpo por não me ter me dado filhos quando na verdade eu não saberia como amá-los, te culpo por não me deixar respirar quando na verdade eu é que estou morto, nossa vida foi roubada, não existe mais, nem mesmo morrer eu consigo, só me resta pedir me perdoe, pois agora sei que quem te levou a ser assim fui eu, procurando dentro de mim o fogo da paixão do passado, esquecendo o amor verdadeiro do presente , e te perdi, perdi minha vida, os dez anos mais felizes que um homem pode ter.
Ele chora olhando a maçã e sem perceber da uma mordida nela.
Batidas fortes no vidro do carro o assusta, Douglas acorda olhando pra os lados .
Sai do carro, policiais o ajudam Dora chorando o abraça – Meu amor pensei que tinha morrido, nunca mais faça isso comigo!.
- O que aconteceu... eu não entendo onde estou?
- Meu amor, você passou sobre uma pedra, o carro travou e você acabou batendo em uma arvore, alguém avisou a policia, quase enlouqueci, nunca mais faça isso comigo.
Douglas abraça a esposa fortemente - Então estou vivo, era um sonho, ainda tenho minha vida, meus 10 anos estão de volta nunca mais vou me importar com seu ciúme, quero somente ficar ao seu lado, recuperar dez anos que não te amei suficiente.
- Meu amor, seu amor, sua atenção, seu carinho, me sentir especial na sua vida é a única coisa que quero, alem é claro de continuar sua sócia no nosso império.
Uma velha com um cesto cheio de maças se aproxima Douglas reconhece velha
Dora- Veja que linda maça deve estar um delicia!
Douglas apavorado reconhece a velha – Não toque nessa maçã!
- Dora – Ora Douglas é apenas uma senhora tentando sobreviver e pega uma maça
Dora -Qual o nome da senhora?
A velha responde
-Meu nome é destino.
Dora – Destino... Existe?
A velha responde sorrindo se afastando – acredite se quiser
Douglas pega a maça da mão da esposa e a joga pro ar
ela o olha admirado – Douglas porque fez isso?
- Porque quero te beijar e nunca mais ficar longe de você.

Conto #10 - Desvão do Tempo

Conto #10 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


Desvão do Tempo


Douglas chutou o pára-choque do carro e soltou um palavrão. Com as mãos na cintura olhou ao redor. Anoitecia rapidamente e aquela maldita estrada era deserta. Onde ia arrumar água, pensou. Como foi se esquecer de uma coisa tão idiota: checar a água antes de pegar a estrada?

Agora estava ali, perdido no meio do nada, numa porra de uma estrada onde não passava uma porra de um carro, onde não tinha uma porra de uma casa.

- Puta que o pariu!, xingou em voz alta.

Tirou o celular do bolso do paletó. Fora de área. Começou a andar em círculos, como se procurasse uma saída. Repentinamente vislumbrou por entre algumas árvores o brilho de uma luz. Uma casa! Enfim uma coisa boa naquela porra daquele dia em que tudo tinha dado errado.

Caminhou o mais rápido que pôde pelo mato em direção à luz salvadora. À medida que se aproximava, ia tentando adivinhar os contornos da casa, na verdade, um casebre miserável, podia ver bem agora. Mas, tudo bem, pensou; por mais miserável que seja, água todo mundo tem. Nem que seja de um poço. O súbito medo de que a solução do seu angustiante problema não estivesse tão perto como pensara o fazia caminhar cada vez mais depressa, quase corria, como se deixasse assim o pessimismo para trás.

Ia dar um esporro no Antunes, aquele viado safado! Como é que arruma um cliente num buraco daqueles? Mesmo que fechassem o negócio, nem valia a pena o tempo perdido pra chegar até lá. E agora, na volta, essa...

O casebre era ainda mais miserável do que parecia visto de longe. A porta estava entreaberta, como se alguém já o esperasse. Refreando a ansiedade, olhou pela fresta e viu uma velha, enrolada num xale. Estava de costas para a porta, sentada numa cadeira, parecia bordar ou costurar.

Douglas empurrou a porta com cuidado. Chamou-lhe a atenção o fato de, embora muito pobre, ser o casebre muito limpo.

- Por favor, eu preciso de um pouco de água. Será que a senhora pode me ajudar? Perguntou já dentro da pequena sala, que era ao mesmo tempo quarto.

A velha levantou-se com aquele esforço característico das velhas que se levantam de uma cadeira. Já devia estar perto dos cem, pensou Douglas. Ao virar-se ele percebeu que o olhar dela tinha uma expressão que ele não soube definir bem e que, de certa forma, o surpreendeu. Era gentil, mas penetrante. Apesar da evidente idade avançada, emanava dela um vigor inesperado.

- O moço veio de muito longe, não é? Nessa estrada aqui não passa muito carro, não.

A velha olhava-o com interesse. Mas não parecia surpresa ou assustada por ter, de repente, um estranho em sua casa. E continuou falando.

- O pessoal prefere ir pela estrada nova...
- É – respondeu Douglas, querendo encurtar aquela conversa. Mas me informaram que por aqui eu cortaria caminho..

- Cortar caminho... ganhar tempo, não é? O moço queria ganhar tempo...
- É, eu tenho outros compromissos ainda hoje...

Parou, imaginando que aquela velhinha que parecia saída de outro mundo não ia entender a importância do que ele estava falando.

- Mas a senhora tem aí um pouco de água, uma vasilha...
- O moço tem muita pressa, não é? Está sempre correndo, para lá... para cá... Não presta muita atenção nas coisas, nas pessoas, não é? Assim o moço acaba trapaceando o tempo...

Douglas já estava irritado com aquela conversa.

- Por favor, dona... eu só queria um pouco de água para botar no carro.
- Eu sei, meu filho, vou te dar a água.

A velha foi andando, arrastando os chinelos, em direção a um canto do casebre, que não chegava a ser um outro cômodo, mas era separado por uma cortina florida que ela deixou meio aberta. Continuou falando.

- ... e o tempo pode não gostar...

Enquanto falava, procurava alguma coisa num armário velho, cheio de panelas e bugigangas. Voltou trazendo na mão uma vasilha e indicou a bica d’água. Entregou-lhe também uma maçã, que ele não percebeu de onde saiu.

- O moço tem filho, não tem? O menino já está crescidinho...

Douglas não prestava muita atenção ao que a velha dizia. O que precisava era da maldita água para resolver o problema de aquecimento do carro e ir embora daquele lugar perdido no mundo. Disse obrigado e pegou a vasilha, com pressa.

- Velha maluca! Nem tenho filho! resmungou enquanto saía da casa em direção à bica improvisada com um cano suspenso por uns bambus, que vinha não se via de onde. Encheu a vasilha.

Deu a última mordida na maçã, cuspiu uns caroços e jogou fora o miolo. Caminhou rapidamente até a estrada, sentia a umidade na barra da calça. Aquela noite ia ser fria, pensou.

Despejou a água no reservatório do carro, fechou o capô. Abriu a porta do carro e sentou ao volante. Instintivamente ajeitou o retrovisor. Olhou-se olhou no espelho e viu um rosto, um rosto diferente. Não exatamente diferente, era seu rosto, por certo, mas havia algo... não sabia bem o que. Pareceu-lhe que os cabelos brancos já não eram tão tímidos, nas têmporas. Na verdade tomavam-lhe quase toda a cabeça. O rosto era mais gordo, mais flácido. Deve ser a luz, pensou. Àquela hora já havia escurecido bastante, ele mal enxergava a estrada. Notou que o mato parecia mais alto.

- Devo estar cansado, essas olheiras...

Deu partida no carro. Enfim ia sair daquele lugar onde nem devia ter ido. Só mesmo o idiota do Antunes para fazer ele perder um tempo precioso com aquela visita.

Dirigia o mais rápido que podia, apesar da estrada ruim e de só contar com os faróis. Só então se lembrou do celular, fora de área o tempo todo naquele fim de mundo. Tateou o bolso do paletó, no banco do carona, mas não conseguiu encontrá-lo. Pareceu-lhe de repente que as mãos que seguravam o volante estavam mais envelhecidas. Lembrou-se da velha, bruxa esquisita. Deixa pra lá, pensou. Tinha que sentar o pé no acelerador, estava super atrasado. Não conseguia lembrar porque estava naquela estrada, seguia instintivamente. Chegou à rodovia, tomou uma determinada direção sem saber porque.

De repente um toque que ele não reconheceu de imediato. Mas era de um celular, tinha certeza. Será que tinha mudado o tom da campainha e não lembrava? Achou enfim o celular caído sob o banco. Reduziu a velocidade, fez uns malabarismos ao volante e conseguiu pega-lo sem parar o carro. Aquele não era seu celular, devia ser do babaca do Antunes. Atendeu irritado.

- Alô.
Do outro lado a voz de um menino.
- Papai? Você ainda vai demorar?

29 abril 2006

Conto #11 - Douglas

Conto #11 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


Douglas


(Você ainda vai se dar mal! Você ainda vai se dar muito mal!)
Douglas bateu o capô do Corcel com força, ao mesmo tempo em que soltou um palavrão.
Não que adiantasse muito, pois se encontrava sozinho.
Para onde quer que olhasse, apenas aquela estradinha de terra batida e mato.
Isto nunca lhe havia acontecido antes.
(Você ainda vai se dar mal! É uma questão de tempo!)
A voz do Arantes, seu sócio na firma de representação e vendas, ia e vinha dentro de sua cabeça.
O hábito de Douglas de se utilizar daquelas estradinhas, de atalhos pouco conhecidos e caminhos clandestinos que encurtavam as distâncias, era notório.
Se ele podia ir do ponto A ao ponto B em uma hora e quarenta, por que faria o mesmo
em duas horas?
Às vezes, vinte minutos era a diferença entre fechar um negócio ou ficar chupando o dedo.
Resignado, mas nem tanto, sentou-se ao pára-choque... e disse outro palavrão.
Esperaria uma eternidade até que passasse alguém que lhe desse carona.
Um caminhão, uma carroça transportando leite, mesmo um garoto numa bicicleta bastavam.
Pensava na fragilidade dos carros modernos quando percebeu que não estava assim tão só.
Na outra margem, a uns cem metros de onde estava, enxergou uma vendedora de beira de estrada com seu tabuleiro. Estranhou que não a tivesse visto antes.
Douglas riu do ridículo daquela situação.
Ele não conseguiria uma carona assim como ela não venderia nada.
Mas ela estava ali todos os dias; ele não.
Passada quase uma hora, decidiu ver o que ela tinha para vender e foi até lá.
A pobre mulher encarquilhada tinha uma corcunda maior que o sujeito de Notre Dame. O corpo estava coberto por várias camadas de roupas, vários casacos e saias sobrepostas.
À volta da cabeça, um lenço que deixava de fora apenas os olhos, o nariz, a boca fina e o queixo – e mesmo o pouco que era visível não oferecia uma visão agradável.
Parecia ter a pele encardida e os olhos sem-vida.
No tabuleiro à sua frente, sobre um caixote, se via uma dúzia, não mais, de maçãs.
As maçãs também não eram apetitosas.
Chegou perto o bastante para que ela o ouvisse:
-Meu carro enguiçou, disse Douglas. A que distância fica a cidade mais próxima?
A velha levantou os olhos em sua direção e da sua boca, quase sem dentes, ouviu-se:
-Maçãs?
-Não, obrigado. A cidade mais próxima fica em que direção?
Como da primeira vez:
-Maçãs?
Percebeu que estava perdendo seu tempo com a retardada.
Andou para um lado, andou para outro.
Que vida estúpida, pensou. Com uma agenda lotada, com tanto para fazer, e ele ali...
Voltou para o carro e sentou-se ao banco do motorista.
Se havia um tempo para expiar todos os seus pecados, era aquele, mas não sentia vontade para tanto. Aliás, nunca pensava nisso.
Experimentou o rádio: apenas chiados.
Tirou a gravata, afrouxou os botões da camisa. Saiu do carro.
Chutou algumas pedras na estrada, colheu flores silvestres, amassou-as, deitou-se no meio do caminho, olhando fixamente o céu azul. Tirou um cochilo, acordou e dormiu de novo.
A tarde marchava sem piedade.
Quando se viu, estava sentado numa pedra, ao lado da velha.
-Maçãs?
.Nuvens escuras desabrochavam no horizonte e um vento incômodo anunciou uma drástica mudança a caminho.
A velha foi a primeira a reagir.
Levantou-se sem dificuldade, recolheu as maçãs no bojo da saia e pôs o tabuleiro sob o braço. Sem nenhuma cerimônia, caminhou para dentro do mato alto que delimitava a estrada de terra.
O vento tornou-se mais forte, levantando a poeira em torvelinhos.
A velha já ia longe, quando Douglas resolveu segui-la.
Um casebre escorado por uma figueira surgiu de dentro da vegetação alta..
Era feito de todo tipo de material, principalmente daquilo que se joga no lixo
Entrou.
A velha acendia um fogareiro feito de um latão cortado e não pareceu se incomodar com ele. O único móvel perceptível era a cama à direita, na verdade um estrado de ferro sobre tijolos e coberto de panos.
Placas de trânsito e calotas de carro decoravam as paredes.
Douglas sentou-se no mesmo instante que a chuva passou a tamborilar no teto.
Logo algumas poças denunciaram goteiras e a velha recolheu-se à cama.
Ninguém iria acreditar naquilo quando ele contasse mais tarde, mas o Arantes provavelmente se gabaria de ter previsto tudo aquilo.
(Você um dia ainda vai se dar mal!)
O Arantes sempre viajava de ônibus, nunca se arriscava, levava foto dos filhos e da esposa na carteira e não dormia fora de casa.
Não à toa era um vendedor três estrelas enquanto Douglas chegara rápido às cinco.
Olhou seus sapatos sujos pela poeira.
Aquilo era demais!
Sempre tivera muito zelo pela sua aparência; os fregueses gostavam de uma pessoa bem vestida. Tirou um lenço do bolso e passou a limpá-los.
Quando estavam bem limpos lembrou-se das garrafas de vinho, presenteadas por um cliente, que guardara na mala.
Mesmo enfrentando a escuridão e a chuva, saiu do casebre indo até o carro.
Nem se dera conta até então de tê-lo abandonado.
Que se dane! Era o carro da empresa, tinha seguro!
Pegou o embrulho de presente e voltou pelo mesmo caminho sem quase conseguir ver o casebre debaixo de tanta chuva.
Quando entrou, percebeu que a velha usava de um baralho de cartas.
Lembrou-se do pôquer de sexta com o pessoal da contabilidade.
Quase sentia o cheiro dos charutos, a fumaça adocicada impregnando tudo.
Com o canivete de bolso, abriu o merlot.
Sentou-se ao chão duro e sedento, engoliu metade do conteúdo da garrafa de uma só vez...
Depois brindou sozinho às festas de fim de ano na empresa... às secretárias quarentonas, desesperadas por sexo e álcool.
A velha colocava cartas sobre a cama.
- Vai ler a minha sorte, vovó?
Ela indicou a extremidade da cama, convidando-o para se sentar.
A penumbra proporcionada pelo fogareiro dificultava identificar as cartas.
Não parecia um baralho comum.
- Quer saber seu futuro? Perguntou a velha com uma voz baixa, mas firme.
- Eu tenho bastante tempo pra perder... E o meu futuro? Eu vou ficar rico?
- Sim... Muito dinheiro e poder. Presidente de empresa... Sim.
- Tá brincando...
A velha virava algumas cartas e substituía outras.
- Viagens ao exterior... Prestígio e reconhecimento.
Douglas abriu a última garrafa, um vinho não muito bom, vinagrento.
-Vai falando, velha, que eu tô gostando!
- Uma pessoa no seu caminho... alguém vai escurecer tua luz ...nada bom...
- Como assim?
- Perdendo dinheiro, pessoas se afastam... perde razão e então...
- O que acontece?
- Muito ruim...você foge, passa muito tempo desaparecido,... seus conhecidos se voltam contra você... perde tudo...
Douglas riu e acabou bebendo o resto do vinho amargo, ficando sonolento.
(Você ainda vai se dar mal!)
Maldito Arantes, velho imbecil.

Os raios de sol que penetravam pelas frestas aquecem o rosto de Douglas, caído ao chão. Despertou confuso, sem saber quanto tempo passara dormindo.
Um dia de sol forte aguardava por ele, lá fora, e para sua surpresa o carro desaparecera.
Sem escolha, passou a andar pela estrada.
Dois quilômetros depois, um sujeito de moto aparece e concorda em lhe dar carona, por alguns trocados.
Na rodoviária pega um ônibus para a capital e depois um táxi para casa.
O porteiro de seu flat não era o mesmo de sempre, mas não se importou com isso.
Precisava de um bom banho, colocar roupas limpas e...
Quando se encaminha para o hall de entrada, dois homens surgem em seu caminho.
- Por favor, retire-se do prédio imediatamente! Disse um deles, barrando-lhe.
- Eu moro aqui!
- Vamos chamar a polícia se insistir! disse o outro muito nervoso.
Nunca vira aqueles sujeitos antes.
- Qual é o problema? Eu moro no vigésimo quarto andar!
O sujeito nervoso, que secava a testa com um lenço, replicou:
- Não queremos complicação! Por favor vá embora!
Douglas, mais extenuado do que irritado, resolve ir até a firma.
Segue de táxi até o prédio que bem conhece.
No elevador pensou, pela primeira vez, nos acontecimentos do dia anterior e na velha das maçãs. A secretária na recepção não conteve um grito ao vê-lo.
- O que foi Julinha? A gente não pode ficar algum tempo fora? Perguntou, sorrindo de passagem.
Devia estar mesmo bastante desalinhado, pois todos o olhavam com notável espanto.
Acenou para os conhecidos que paravam atônitos.
Somente ao entrar em sua sala Douglas teve sua vez de surpreender-se também.
Um rapaz loiro estava sentado na sua mesa, que, por sinal, fora trocada por outra, de vidro azul.
E as paredes haviam sido pintadas! Alguém colocara vasos com plantas junto das janelas e... aquilo não podia estar acontecendo!
No calendário da parede a data também estava errada, pelo menos com dez anos de erro!
Mal teve tempo para tomar qualquer atitude.
Dois policiais fardados o agarraram por trás e logo estava algemado e sendo preso.
Jogado em uma cela, Douglas lutava contra a sensação de estar sonhando, de estar experimentando outra realidade.
Um homem alto e de cabelos despenteados, se apresentou como delegado:
- Finalmente nós o pegamos! E dizem por aí que gente rica nunca é presa!
- Deve ter havido um engano... vocês pegaram a pessoa errada!
- Achou mesmo que ia escapar? Reconheceram você no seu antigo endereço, foi uma grande estupidez ter aparecido por lá!
- Qual o problema de vocês? Me chamo Douglas...
O delegado tira do bolso um papel dobrado e lhe entrega.
Sob o título de “Fugitivos procurados”, o rosto de olhos fixos no vazio, uma fotografia ruim retirada de um documento qualquer, mas que sem dúvida, estampava seu rosto.
“...assassinato... culpado pela morte de Arantes da Silva, funcionário da empresa onde o procurado era presidente, Douglas-de-tal se encontra foragido...carro encontrado numa estrada vicinal... qualquer informação que leve à sua captura...”
- Você devia odiar o sujeito para matá-lo daquela maneira! Comentou o delegado com desprezo. Mas um dia nós iríamos pegá-lo. Era apenas uma questão de tempo para você se dar mal.
- Eu sei, balbuciou Douglas com os olhos sem-vida, eu sei.

FIM.

Conto #12 - Eclipse da Lua

Conto #12 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


O Eclipse da Lua


Ainda lembro daquela noite como se fosse hoje. Eu acabara sai de um jantar com alguns amigos de trabalho após um seminário em que eu palestrei sobre desenvolvimento financeiro, e peguei a estrada direto para voltar à minha cidade, onde logo após o almoço, eu teria uma reunião em minha empresa. Teria poucas horas para descanso, sendo que a viagem demoraria cinco horas e chegaria em casa perto das sete e meia da manhã.
A estrada estava calma. Era uma longa reta que se estendida por mais de sessenta quilômetros sem nenhuma curva. A lua cheia no céu claro iluminava imensamente todo o caminho. Olhar para o fim da estrada, era como olhar para os confins do Universo. Sentia-me privilegiado naquele momento. O dia tinha sido maravilhoso, o seminário foi um sucesso. Senti naquele momento recompensado por todo o esforço que fiz durante quinze anos de carreira. Eu jamais esperava chegar aos trinta e três anos, dono de uma das maiores empresas financeiras de todo o estado, que se desenvolvia gradualmente nacionalmente. E para finalizar todos os acontecimentos desse dia, eu era acompanhado por um eclipse lunar que se iniciava no exato momento em que olhei para o céu pela primeira vez naquela noite.
Nunca antes vi uma Lua tão cheia e tão brilhante. Fixei meu olhar para o alto por por alguns segundos voltando logo em seguida a atenção para a estrada. Um calafrio correu meu corpo e senti ele todo arrepiar. Meus braços ficaram tensos sobre o volante me empurrando para o encosto do banco. Pisei o mais fundo que pude no freio do carro e ele derrapou alguns metros antes de para por completo. Fiquei estático por algum tempo e voltei à realidade aos poucos. Minha respiração estava ofegante e meu coração parecia que ia explodir para fora do peito. À frente do meu carro, iluminada pelas luze do farol alto, uma senhora estava parada. Abri a porta do meu carro e sai em direção a ela com as pernas tão trêmulas quanto minhas mãos. Parei alguns metros e a olhei fixamente no rosto que mantinha imóvel olhando à sua frente.
- A senhora está bem?
Ela deu uma piscada forçada e virou sua cabeça olhando para mim.
- Por pouco eu não estaria – disse ela em uma voz fraca e aguda que saia como se uma mão pressionasse sua garganta dificultando a saída de ar. Fez-me lembrar uma bexiga cheia de gás quando se estica o bico e deixa o ar sair vibrando a ponta. Só me lembro de ter visto uma figura igual aquela nos desenhos dos livros de contos de fadas que minha mãe lia quando eu era bem pequeno. Infelizmente não se parecia em nada com a princesa, mais sim com a madrasta malvada. Tinha sua pele enrugara e branca, cercada a cada centímetro por pontos escuros até onde eu conseguia enxergar. Era baixa e tinha as costas um pouco inclinadas para frente; suas mãos eram pequenas, porém seus dedos pareciam mais longos do que deveriam ser. Usava um xale tricotado com fios negros que cobria todo seu ombro e seus braços até os cotovelos. Usava um vestido igualmente negro, porem muito mais gasto e desbotado. Seus cabelos totalmente brancos estavam cobertos por um lenço bem amarrado da mesma cor do xale que deixava alguns fios do cabelo soltos pelo rosto e cobrindo suas bochechas pálidas. Sua boca era mais esticada do que o normal, e seu nariz parecia uma pequena batata recém tirada da terra. Os olhos pareciam ser azuis, mais um azul tão opaco que dava a sensação de que o olho estava morto.
- Sinto muito. Não vi a senhora. Eu estava olhando para a lua quando voltei meus olhos para a estrada e a vi parada no meio do caminho.
A velha olhou por cima de seu ombro em direção à lua que naquele momento tinha um quinto de sua superfície coberta pelas sombras. Ela voltou a olhar para mim com um sorriso que me fez sentir calafrios pelo corpo todo.
- Com o céu totalmente claro fica mais bonito de se observar um eclipse como esse.
- Com certeza não via um eclipse como esse há muito tempo – olhei novamente para a lua semi coberta e deixei passar alguns segundos; senti que deveria sair dali o mais rápido que pudesse.
- Se está tudo bem com a senhora eu vou continuar minha viajem. Tenha uma boa noite.
Procurei sorrir mais o calafrio que eu sentia não deixou o sorriso sair muito natural. Dei as costas para ela e voltei até meu carro em passos apressados. Entro; sento; fecho a porta e ligo as chaves na ignição. Senti uma leve pontada no peito ao perceber que ao virar a chave, não houve nenhum ruído do carro que eliminasse aquele silêncio angustiante que me cercava. Girei a chave mais duas vezes e simplesmente ela deslizada em seu circulo sem fazer com que o carro desse algum sinal de vida. Apoiei minhas mãos no volante e olhei para frente. A velha ainda encontrava-se parada no mesmo lugar que estivera desde o primeiro instante. Forcei meus olhos nela e notei que fazia o mesmo comigo. Alguns segundos se passaram até o momento em que a ela deu um primeiro passo em direção ao meu carro, caminhando para o lado onde eu estava sentado.
Ela aproximou-se lentamente e colocou seu rosto bem próximo da janela, quase passando sua cabeça para dentro do carro. Quando falou, senti seu mau hálito tirar todo o ar puro que havia à minha volta.
- Acho que seu automóvel não vai voltar a funcionar.
Pela terceira vez naquela noite senti o calafrio percorrer meu corpo desde os dedos dos pés até o ponto mais alto da minha cabeça.
- Por que a senhora acha isso? – perguntei à ela com um pouco de falta de ar.
- Se fosse, ele já teria começado a funcionar; ou simplesmente não teria parado de funcionar.
Não consegui pensar em nada para responder a ela naquele momento. Continuou.
- Há uma fazenda aqui perto que tem uma linha telefônica. Posso acompanhar você até lá, se quiser, para que chame algum mecânico que possa te socorrer.
Mal tive tempo de tomar fôlego par falar e ela continuou novamente.
- Só preciso deixar essa cesta em minha casa antes de lhe acompanhar. Está muito pesada.
A velha carregava uma cesta feita de tiras de bambu coberta por uma pano branco amarelado, talvez mais velho do ela.
- E se não for incomodar – ela ainda persistia em falar – você poderia carregar a cesta para mim.
Engoli seco e junto com a saliva a desculpa para recusar aquela oferta.
Caminhei pouco mais de cinco minutos por uma trilha em meio a um mato baixo, cercado por árvores baixas e troncudas com copas recheadas de folhagens. Ultrapassando o limite de duas árvores que estavam muito próximas uma da outra, me deparei com uma paisagem que me surpreendeu. Não consegui definir se era belo ou tenebroso. Vi a poucos metros à minha frente um pequeno riacho de águas calmas que descia na direção contrária em que eu seguia pela estrada. Suas águas brilhavam pelo reflexo da luz da lua que, mesmo já com sua metade coberta de sombra, ainda exibia um brilho fantástico. No centro do riacho, sobre um banco de areia, estava erguido um pequeno casebre onde se via brilhar luzes de velas que saiam de dentro. Andei até às margens do riacho e tive a resposta de como ela chegava até sua casa: pequenas tábuas estendidas sobre pedras que iam até a entrada da casa. Equilibrei-me com a cesta na mão, atravessei o riacho até passar pela porta e colocar a cesta sobre uma pequena mesa de madeira que havia num canto perto de uma janela.
Parei por um instante para observar mais uma vez a lua que já se ocultava faltando apenas um quarto para atingir a escuridão total.
- Aceite isto como forma de meu agradecimento pela sua bondade de me acompanhar trazendo minhas coisas até aqui.
Ao me virar, me deparo com a cesta descoberta em cima da mesa recheada de grandes maçãs vermelhas e lustrosas; e a velha empunhando em uma das mãos em minha direção a maça que me oferecia. Seguida da quarta sensação de calafrio naquela noite, voltei a me lembrar das histórias de contos de fadas que minha mãe lia quando pequeno. Mas afinal de contas, que mal haveria em dar uma mordidinha naquela maçã?
Realmente era uma maçã maravilhosa. Tão doce e saborosa que minha boca salivava a cada mordida. Eu não diria que comecei a passar mal após comer a maçã, mais não posso deixar de admitir que comecei a sentir alguma coisa de diferente comigo. Olhei mais uma vez pela janela e vi o último brilho da lua desaparecer por completo e a escuridão tomar por inteiro seu lugar na noite. Apenas pelo brilho das velas dentro do casebre era possível enxergar alguma coisa.
- Por que você não senta para que agente possa conversar um pouco?
Simplesmente não consegui recusar mais nada do que ela me oferecia daquele momento em diante. Apenas conseguia responder o que ela me perguntava.
- Me dia uma coisa, Douglas – eu não me lembrei de ter me apresentado a ela – o que realmente você fez ao seu amigo Marcos quando você tinha dezessete e ele dezoito anos de idade?
Não tenho idéia de como ela soube sobre o que aconteceu entre Marcos e eu. E eu simplesmente comecei a falar.
- Eu não tinha a mínima intenção de prejudicar o Marcos. Aconteceu uma semana antes do meu aniversário de dezoito anos. Já fazia algum tempo que eu estava usando cocaína e naquele dia na escola descobriram que alguém estava passando a droga para outros alunos. Dois dias depois eu e Marcos iríamos prestar um concurso para uma vaga de estágio em uma das maiores empresas de finanças da época. Marcos tinha mais chance de ser aprovado para a vaga do que eu. Naquele dia na escola a polícia apareceu para revistar todos os alunos. Eu estava com a droga na mochila e dei um jeito de me livrar dela. Resolvi esconder na mochila do Marcos. Não tinha a intenção de prejudicar da forma como ele foi prejudicado, apenas quis aproveitar a oportunidade de me livrar das drogas e fazer com que ele não fizesse a prova. Não imaginei que ele pudesse ser preso e ter sua carreira e seu nome manchados por toda a vida. Quando aquilo aconteceu ele já era maior de idade.
Após eu confessar à velha o que havia acontecido naquele dia, senti um frio diferente de todas as sensações que eu havia sentido na minha vida. Era um frio que saia do meu corpo, com se parte da minha alma estivesse sendo levada embora. E essa sensação se repetia a cada pergunta que ela fazia sobre meu passado e eu sem conseguir me impedir, confessava. Ela buscava minhas nas minhas memórias as piores coisas que eu havia feito, os meus piores pecados.
Não sei quanto tempo isso durou. Quando percebi que novamente conseguia escolher sobre o que falar ou não, a velha se calara. Uma claridade que vinha de fora entrava pela janela ao meu lado. Olhei para tentar organizar meu pensamento e vi a lua voltando a brilhar. A escuridão havia passado. Então a velha falou, me fazendo despertar para a realidade, me trazendo da lua para dentro do casebre.
- Acho que você deveria tentar religar o seu carro. Às vezes esses problemas são passageiros.
Ao olhar para a velha dizendo aquilo, algo nela me chamou a atenção. Sua pele parecia mais lisa, seus cabelos mais escuros, seus olhos mais vivos. Ela parecia estar mais jovem.
Levantei-me da cadeira e me caminhei até a porta. Estava me sentindo mais cansado do que o normal. Ao atravessar as tábuas sobre o riacho, olhei para trás e vi a velha sorridente fechando a porta e me olhando de soslaio. Segui o mais rápido que pude em direção à estrada. Não muito longe de onde estava meu carro, eu o vi com as luzes dos faróis acesos. Ao me aproximar mais, pude ouviu o som suave do motor ligado. No mesmo instante que sentei no banco, vi sobre o acento do passageiro o meu aparelho celular posto de lado. Como pude simplesmente esquecer do meu aparelho celular? Recoloquei-o sobre o banco, fechei a porta e acelerei para voltar ao caminho de casa. Ainda tinha minha cabeça confusa sobre o que havia acontecido momentos antes. Eu olhava para o infinito da estrada quando noto uma coisa diferente em minhas mãos. Não se pareciam com as minhas. Passei uma mão sobre a outra e a senti mais ressecada. Levanto minha cabeça e olho no retrovisor. A visão que tive me espanta até os dias de hoje toda vez que eu olho no espelho. Não era eu. Não podia ser eu. Mas havia ali toas características que eu sempre vi em meu rosto. E realmente a pessoa que eu via no espelho era meu reflexo; porem muito mais velho do que o homem que havia sido aplaudido de pé num auditório lotado horas atrás. Aquela maldita velha, de alguma forma que não consigo explicar, roubou parte da minha juventude e tomou para ela.

Enquanto a lua desaparecia sob a Terra, o Sol surgia forte e vigoroso. Um luxuoso carro de cor prata seguia pela estrada iluminada por aquela luz. E dentro do carro um homem de cabelo grisalho e pálpebras cansadas, seguia seu caminho de volta à sua casa.

Conto #13 - Hibernação

Conto #13 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


Hibernação


Um dia, eu acordei!O mundo estava totalmente diferente do que era antes e minha cidade antes arborizada e cheia de pequenos oásis de verde se transformara numa enorme floresta de concreto e vidro. Atordoado buscava entender o que acontecera e andava sem saber para onde ir.Nas mãos, o jornal apanhado numa lata de lixo e para qual ainda não conseguia olhar sem ter vontade de gritar e chorar desesperadamente: 25 de abril de 2016!Mas não podia ser!Eu me recusava a acreditar que dez anos se passaram e eu não os vivi;
Na loucura que se seguiu ao meu despertar naquela floresta escura e fria, o único ponto verde que restara na cidade, tentava ordenar minhas idéias e encontrar alguma explicação lógica para o que acontecera, mas não havia lógica alguma...Havia o vazio de não existir e a sensação sufocante de alguém que perdeu alguma coisa e essa “coisa” era eu mesmo! De alguma forma, através de algum tipo maligno de mágica ou encantamento eu fora roubado em dez anos da minha vida;
Gritei e atirei longe os jornais; alguns transeuntes me olharam com raiva e desconfiança.
Minha figura despertava suspeita das pessoas, que passavam aquilo me incomodava muito!
Sujo e maltrapilho, eu era uma pálida imagem do vaidoso empresário de porte atlético (conseguido as custas de muita ginástica), ternos italianos, e roupas de griffe, que chamava atenção onde passava, despertando inveja nos homens e desejo nas mulheres.
Senti fome e logo me lembrei de que a última vez que comera algo (ou pelo menos que lembrava ter comido) fora àquela maldita maçã e aquele maldito chá; Chá coisa nenhuma!Poção maligna daquela bruxa perversa; Que loucura!Bruxa? Mas eu não acreditava em bruxas, nunca acreditei em nada que não fosse palpável, comprável, passível de ser adquirido pelo poder do dinheiro ou modificado pela ação do talento e da inteligência.Meu talento, minha inteligência!
De que me serviram o talento e a inteligência naquele dia, quando aquele maldito carro esporte, novinho, quebrou no meio do nada e aquela velha de olhar estranho apareceu?
Minha curiosidade idiota em saber o futuro e o olhar daquela velha me enfeitiçaram e por isso entrei naquela cabana infecta no meio do nada! Se eu soubesse! Mas “se” é o advérbio dos fracassados!Odiava usá-lo!
Pra que ela foi dizer que eu iria ganhar uma fortuna?Aquela foi à isca!
Ela olhou o carro e percebeu que eu gostava de dinheiro (quem não gosta?) e usou isso para me atrair para uma armadilha!Mas pra que meu Deus?Como isso foi acontecer?
Você não tinha o direito de fazer isso comigo, Deus!Comecei a chorar feito criança!
Douglas Camargo, empresário bem sucedido, um trator nos negócios, passando por cima de tudo e de todos para conseguir o que queria não era homem de lagrimas...Mas eis que sentado num canto de muro infecto, o odor de urina queimando as narinas me peguei chorando e implorando a Deus que me ajudasse! Pensei em minha mulher, minhas filhas, meu trabalho!Como eu conseguiria encontrá-los?E será que eles me aceitariam de volta?Claro que sim!Eu havia erguido um império e é claro que ele não acabou em dez anos.Aquele pensamento meu deu forças para levantar e continuar caminhando; Mesmo com repugnância comi um sanduíche pela metade jogado no lixo e cujo odor parecia bom.Caminhei bastante, perguntando aqui e ali pela rua onde eu morava; descobri que a cidade estava diferente, mas as pessoas eram as mesmas, frias, desconfiadas e egoístas, incapazes de parar alguns minutos para dar uma informação, apressadas e fúteis, muitos sequer olhavam para mim e se afastavam com ar de desdém.Parei diante de uma vitrine, meu aspecto estava se possível ainda mais assustador; rosto sujo e cansado e olhos azuis, desbotados e tristes, que eram uma caricatura de mim mesmo, difícil de olhar.
Curiosamente não havia rugas e meu rosto não envelhecera; minha hibernação preservou a pele da ação do tempo;
Finalmente alguém me indicou a direção da minha antiga rua; ficava a quatro quadras dali;
Apressei o passo sentindo o coração na boca; será que minha mulher me aceitaria de volta, acreditaria em mim? Apesar de casados há 10 anos quando eu desapareci, nosso casamento já era uma farsa há muito tempo; apenas a conveniência nos unia; Verônica era a mulher ideal para um homem de negócios: bonita, elegante, boa de exibir em festas e compromissos de trabalho; não nos amávamos mais, éramos apenas inimigos cordiais e a ela bastava um crédito ilimitado e uma boa dose de notícias em colunas sociais para fazê-la feliz, coisas que eu podia fornecer facilmente.
Será que ela casou de novo?Certamente que sim!Com alguém mais rico e mais importante do que eu, provavelmente.Acho que pelo menos minhas filhas lembrariam de mim, apesar de que, eu reconheço, nunca fui muito ligado a elas, principalmente quando eram pequenas; detestava as exigências e birras infantis!Cedo descobri que presentes e mimos faziam com que elas se acalmassem e assim elas cresceram acreditando que podiam ter tudo; quando raramente eu deixava de fazer seus gostos, as duas emburravam durante dias, até que eu desistia e cedia, era mais fácil.Não existia amor de nenhuma das partes, embora elas amassem a mãe, de quem pareciam terem sido xerocadas, cópias idênticas e aperfeiçoadas de uma máquina gastar.Sorri diante daquela imagem!Foi meu primeiro sorriso em dez anos, pensei!
Quase sem querer cheguei a minha rua!Reconheci apenas alguns pontos, mas sabia que o meu prédio ainda deveria estar de pé, afinal de contas era um prédio novo quando eu fui morar nele;
Eu tremia de frio, ou seria de medo? O porteiro me olhou desconfiado; Empostei a voz e procurei passar alguma força à minha pergunta, mas as palavras não saíram; o homem me olhava impaciente do alto da guarita, que sofrera poucas modificações:
-Meu nome é Douglas Camargo, gostaria de falar com Verônica Camargo, falei!
O porteiro respondeu que não havia nenhuma Verônica Camargo e fechou o vidro na minha cara; insisti: pode ser outro sobrenome!
-Tem uma Verônica Lopes que mora na cobertura;
Meu coração falhou uma batida: eu morava na cobertura...Não pode ser coincidência;
-Chama ela, por favor!Diz que é o Douglas que está aqui; Aguardei minutos que pareciam horas!
-Ela diz que não conhece nenhum Douglas -disse o porteiro.
Por favor-insisti-diz a ela que é Douglas Camargo e que eu preciso falar com ela;
Ele pos a cabeça pro lado de fora e apontou para a câmera:
- Olha para câmera!
Limpei o rosto e afastei o cabelo da testa...Aguardei, lutando para não chorar.
-Ela vai descer, pediu pro senhor esperar aqui fora.
Encostei na parede ,o ar me faltando, o coração batendo tão forte que parecia que ia sair pela boca! Eu chorava!A janela da portaria se abriu e uma mulher colocou a cabeça para fora e me encarou; por alguns instantes tudo voltou ao passado, muito embora as rugas ao redor dos olhos dela e os vincos na testa, apesar de discretos (plástica com certeza) não deixavam dúvidas da passagem dos anos para Verônica!Pois era ela que me olhava com incredulidade e horror!Minha mulher!
-Douglas?Não pode ser!
- Pode sim - respondi cansado-sou eu mesmo!Me deixa entrar,precisamos conversar!
Ela recuou e falou qualquer coisa com o porteiro e o portão se abriu;
Ela não havia engordado nada, ainda estava em forma apesar de ter hoje quase cinqüenta anos.
Tentei explicar o que acontecera, falei da pane do carro, da cabana na mata onde entrei para buscar ajuda e da velha que fazia previsões!Finalmente falei da maçã, certamente embebida em alguma misteriosa substância mágica e do imediato mergulho na escuridão do qual só retornei dez anos depois! Verônica sorriu irônica!Seu olhar era de escárnio e ela riu debochada (a mesma risada que eu sempre detestei, cheia de empáfia e superioridade); Chamou-me de louco, cínico, mentiroso, disse que não acreditaria nunca naquela asneira toda, de poção mágica, maçã, anos roubados.
Jogou na minha cara as dificuldades passadas (a maioria delas devido ao fato de meu corpo nunca ter sido encontrado o que ,segundo ela,dificultou o inventário e coisas do gênero)!Ela não mudara nada!Fria e egoísta!Perguntei das minhas filhas: estavam bem e felizes, casadas com homens bem sucedidos e as duas com dois filhos cada;
Chorei diante da notícia: eu era avô e pedi para vê-las!Porém uma está morando na Alemanha e a outra na Bélgica; Verônica casou de novo (como imaginei,com uma rico empresário).
Implorei para subir, tomar um banho, roupas novas; ela disse que não podia fazer nada, que o marido não ia gostar de me ver ali; que eu passasse bem e fosse embora novamente, desta vez pra nunca mais voltar!Insisti, mas ela não cedeu! Fechou o portão sem se despedir e deu ordem ao porteiro para não incomodá-la mais com minha presença!
-Vaca!Egoísta!Filha da mãe!Gritei!
O porteiro ameaçou chamar a polícia!Morri naquele instante!Estava vazio e triste! Andei durante horas sem destino e encontrei um velho colega de trabalho, contei minha história, ele riu e insinuou algum tipo de loucura ou golpe; partiu sem me oferecer sequer um copo dágua!Cambada de egoístas!
Continuei a caminhar como um zumbi, desviando das pessoas e andando sem rumo até que me deparei com a entrada da mata de onde saí hoje cedo ainda tonto, desperto pela luz forte da manhã que, não sei como, penetrara por entre as árvores altas e alcançara meu rosto, fazendo-me despertar do meu sono de uma década; Ao retornar para mata fui acometido de uma imensa sensação de conforto e paz; refleti durante horas sobre tudo que acontecera e cansado adormeci!
Despertei resolvido a lutar pela minha vida nem que para isso fosse a justiça!Teria de haver um jeito de provar a veracidade da minha história e retomar tudo que perdi!Nem tudo, pois Verônica e seu egoísmo e frivolidade não fariam parte da minha nova vida; aliás, muita coisa não mais faria: as festas mundanas, as pessoas interesseiras e oportunistas, minhas filhas mimadas, tudo isso ficaria para trás, enterrado para sempre, caso eu conseguisse retornar ao meu lugar no mundo.
Caminhei em direção a saída e surpreso percebi que o mundo voltara a ser exatamente como era há dez anos atrás!Balancei a cabeça, incrédulo, e atravessei correndo as ruas em direção ao meu apartamento!Os mesmos lugares onde agora pouco eu havia passado e que estavam totalmente modificados pela passagem do tempo surgiam diante de mim como eram;Será que havia algum tipo de portal naquela mata?Como isso podia ter acontecido?Eu tinha certeza de não estar sonhando!Mas àquele não era o momento para questionamentos.Eu precisava voltar para casa e apressei ainda mais o passo até que me peguei correndo feito um louco, esbarrando nas pessoas , sem me importar com nada!Cheguei à porta do meu edifício e parei ofegante!Alfredo o velho porteiro me olhou desconfiado, perguntou se eu havia sido assaltado ou coisa assim!Eu não conseguia falar!Subi e parei diante do meu apartamento!Procurei minha chave nos bolsos e lá estavam elas:, mas elas não estavam lá antes,estavam?Entrei sem fazer barulho e Floppy a poodle da minha filha veio correndo em minha direção!Normalmente eu a afastava rapidamente, mas dessa vez nada me foi mais agradável do que suas lambidas e seu rabinho a balançar furiosamente, seu cheiro, o calor do seu corpinho peludo!Verônica entrou e me olhou surpresa:
- Já consertou o carro?Você disse que ia demorar, mas até que foi rápido não é? Por que você está agarrado com a Floppy?E porque você está com esse aspecto tão sujo?
Ela falava e falava sem parar!Não respondi!Fui para o quarto, tomei um banho demorado, vesti roupas limpas! Minha sensação ainda era de incredulidade; Pedi para Verônica mandar providenciar algo para comer, estava morto de fome, falei.Sentei a mesa, ela me acompanhou meio desconfiada, mas agora um pouco menos loquaz!
De repente uma voz fez meus cabelos da nuca ficarem arrepiados, uma voz sorrateira e malévola:
- Esta é Maria, nossa nova cozinheira; a Joana pediu as contas ontem! Tive sorte em arranjar alguém tão rápido, ela é de forno e fogão!Tava de bobeira na agência hoje de manhã e a contratei na hora!
Virei-me lentamente e lá estava ela: Maria, a bruxa da floresta, a quiromante da maçã e do chá enfeitiçado, em carne e osso!Ela sorriu para mim e piscou! Eu a encarei por longos minutos, acompanhando atônito enquanto ela colocava diante de mim uma terrina de sopa, fumegante e cheirosa, e uma enorme tigela de torta de maçã, segundo ela, sua especialidade!


FIM

28 abril 2006

Conto #14 - Nada Sabes

Conto #14 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


Nada Sabes


“Não, não posso acreditar”, pensou ele, ofegante, ao dar partida no conversível prata. Evidente que não voltaria. Estava desesperado: antes de entrar no casebre era um homem que havia se abandonado à própria sorte. Pouco antes de empurrar a porta e correr para o matagal, na boca da noite, tornara-se um assassino.

Se existiu alguém que nunca transgrediu regras, este era Douglas, empresário bem-sucedido no ramo da agronomia, 35 anos, casado há dez com a exuberante Marcela. Eram o protótipo de casal perfeito, daqueles que se reúnem na mesa durante o café da manhã para discutir assuntos banais enquanto são gentis entre si. Sempre se despediam com um beijo na testa e sorrisos de margarina, antes dele sair para o trabalho, feliz, feliz.
Ambos eram conscientes de que não tinham beleza clássica, mas, com pele branca, cabelos e olhos castanhos levemente ondulados, sabiam que detinham o tipo físico exato para fazer pessoas se apaixonarem, e atrair olhares convidativos ao adultério. Divertiam-se com isto em locais públicos, a ponto de fazerem disso um constante jogo de sedução. “Aquele cara no bar não tira os olhos de você”. “Uhlalá, ainda bem que estou de calcinha”, bufou, antipática, durante uma TPM.
Como se tivessem um pacto, livravam-se com maestria das cantadas da mesma forma sutil e elegante. Faziam-se lindos perante os olhos dos outros e, por este motivo, geravam inveja e torcida, de casais não tão bem-sucedidos no amor, para um possível divórcio. A única diferença era a altura: enquanto Marcela alcançava 1,74 com salto Louis XV, faltavam três centímetros para Douglas chegar a 1,90. Era grandalhão e desengonçado, o que dava uma certa graça à sua aparência, sem deixar de demonstrar o contraste com a delicadeza e classe de Marcela.
O objetivo de crescer ao lado da namorada fez Douglas renunciar ao sonho de viver da escrita para, antes, se estabilizar. Conheceram-se embaixo de um toldo de um Boulevard já fechado no Centro de São Paulo. Douglas emprestou a Marcela o guarda-chuva e, antes de partir, ela lhe retribuiu com o endereço de casa escrito em letras infantis. Horas depois, todo molhado, ele foi buscar o objeto e emplacaram uma discussão sobre guarda-chuvas: segundo ela, o único acessório que não evoluíra. Ele concordou, a partir daí para sempre, e ela lhe emprestou um exemplar de “O apanhador no campo de centeio”, o qual ele considerou mal escrito e, nunca, o hino de uma geração.
Chegou a trabalhar em três empregos para pagar, por si próprio, a universidade de engenharia agrônoma. Tanto esforço atraiu a admiração de mestres e, após o término do curso, foi convidado pelo colega de classe, Camilo, de família muito mais abastada, a montar uma empresa de irrigação de solos. “Eu entro com o capital, você com o trabalho”. Douglas esqueceu da escrita enquanto a micro-empresa se transformava em império. Contentava-se, então, com a típica vida casa-trabalho-trabalho-casa de um casal sem filhos. Seus personagens continuavam adormecidos enquanto as histórias evoluíam sem ser passadas para o papel.
Durante este período, Marcela, que dificilmente saía de casa e, mesmo assim, apenas acompanhada do marido, dividia, com o mesmo empenho, as tarefas de organizar o funcionamento da casa e cuidar de sua forma física. Era comum vê-la trajada com vestidos indianos de cores discretas que denunciavam suas curvas de mulher de revista masculina, e escrever cartas enormes e sentimentais ao marido, amigos e parentes póstumos. “Marcela, não sofre tanto”, alertava Douglas. “Não acredite em tudo que escrevo”, retrucava. Enfim, uma mulher bonita demais que também se dedicava a escrever livros infantis. Pintava aquarelas, fazia colagens, bordava desenhos e os inseria em sofríveis histórias. Esforçada, sem talento e frustrada pela recusa de editoras comerciais em publicar suas obras. Para compensar, Douglas pagava a publicação de livros que entulhavam o quarto de hóspedes e eram distribuídos nos eventos da empresa.
Durante a última festa de fim de ano, regada a champanhe e música eletrônica, enquanto orgulhosamente distribuía exemplares de mais um fracasso editorial, Evangeline o tocou com a ponta dos dedos em suas costas e pediu um livro. Quando seus olhos se cruzaram, soube naquele momento que estava irremediavelmente perdido e, nunca soube explicar, mas só enxergou cor nos lábios da mulher. Era o vermelho da papoula, o resto do corpo estava em preto-e-branco. Como em uma película antiga.
Nunca fora tão inocente a ponto de se deixar envolver por uma desconhecida, cujos traços angelicais, pele clara e cabelos escuros, um pouco acima do peso. Com gestos decididos que a assemelhavam a uma atriz dirigida por Stanley Kubric, apresentou-se como resenhista e, no dia seguinte, telefonou para dizer que precisava conversar sobre o livro. Era a primeira vez que Douglas mentia para Marcela, e foi encontrá-la durante o horário de almoço. Foi a pé. Dirigir, nunca.
Ele amou Evangeline mais uma vez quando a viu, linda na praça arborizada que ficava em frente à capela na rua de trás de sua empresa, com terninho preto e livro nas mãos, esperando, impaciente, por ele. Foi o momento mais lírico de sua vida. Não demorou muito para a conversa evoluir, de literatura para amor, de idílio para a confissão de que era casada com um dos funcionários da empresa, que já o observava e havia estudado detalhadamente como se aproximar dele, e que iria libertá-lo. Daí para a concretização do ato sexual foi instantâneo.
Jamais se entregou tanto e fora tão verdadeiro. Fitou seus olhos e perguntou se estava sendo sincera, foi patético quando pediu para que não o machucasse. Estava quebrando regras, sentindo-se livre, mas sabia que sua vida havia acabado a partir daquele momento. Quando ela foi embora, ficou desorientado, sem chão.
“O pior abandono é entregar sua vida nas mãos de quem não lhe dá a mínima”, pensou, algum tempo depois. Havia se tornado refém de uma história, e das vontades de Evangeline. A percepção disto veio após ligar diversas vezes ao seu número de celular, e ela não retornar, mandar mensagens que discorriam sobre seu sentimento, e não receber resposta. “Tudo é ‘emo’, relaxa! Além disso, estamos em ritmos diferentes”, esquivou-se.
O segundo encontro ocorreu por muita insistência da parte dele, e bastou o primeiro beijo para levá-lo ao orgasmo. Desesperado, queria sugar o néctar da vida: foi brusco, teve prazer equivalente a uma overdose causada por um pico na veia. O fato é que estava viciado nela.
“Ela foi uma atriz”, lamentava-se, enquanto chorava pelos cantos. Diante disto, não olhava mais para os olhos de Marcela, sequer se concentrava no trabalho. “Tira umas férias”, aconselhou Camilo. Douglas, então, contou o que estava acontecendo e, intimamente, Camilo ficou contente ao constatar que a farsa do casal perfeito chegava ao fim. “Você está se comportando como um amador!”. O problema é que Douglas era um principiante na arte de amar: apenas queria saber de Evangeline. Antes dela, não olhava para os lados. Agora, se policiava para não reparar em mais ninguém. E esta obsessão fazia com que sofresse com a possibilidade dela ficar com outros homens. “Eu me coloquei nesse buraco e terei de ser egoísta a ponto de sair sozinho dele”, afirmou, categórico.
Cada um fica com sua verdade e razão: sempre seria as palavras de um contra o outro. A verdade é que a vida de Evangeline era cheia de cobranças. Ela esperava em Douglas um pouco de leveza, mas encontrou-se diante de um homem mais problemático do que aparentava e que, infelizmente, se apaixonara por ela. Ela o amara, sim, quando o encantamento foi mais forte, e seria assim, se ele não descumprisse a combinação de não atrapalhar seus planos. “Se você me ama de verdade, vá, de carro, ao ponto mais alto da montanha à Oeste de sua casa. Se tiver coragem, serei sua”.
Com o coração disparado, seguiu para casa e esperou que Marcela sentasse ao lado dele para sentir a brisa na sacada. Perguntou a ela se estava feliz. “Nunca cheguei a apenas estar”, disse, enquanto acariciava ternamente o rosto do marido. Então, ele chorou abraçado a ela, que sempre achara comovente quando um homem derramava lágrimas a ponto de soluçar. Era uma dor brusca, incontida, como se fosse o peso de todas as dores do mundo em suas costas.
Minutos depois, quando ele entregou um cartão de banco, não entendeu. Lembrou-se do primeiro desenho que Douglas a havia dedicado. Um globo terrestre mal desenhado com a palavra “você” escrita ao meio. “Vendi minha parte na empresa para o Camilo. Aqui tem dinheiro suficiente para que você viva confortavelmente para o resto da vida. Vou embora”. Marcela pensou que se tratava de mais uma das brincadeiras sem-graça do marido, mas Douglas se levantou rapidamente e foi se vestir com o primeiro terno que encontrasse. O azul-marinho.
Pela primeira vez, sentiu falta de uma roupa mais esportiva, vestiu-se sem os cuidados habituais e a esposa alterou a voz, tentando feri-lo. “Você cheira a remédio!”, disse, em mais um de seus rompantes de severidade, referindo-se ao sabonete de enxofre que ele usava para tratar coceiras no púbis. Douglas desceu as escadas correndo, e pegou a chave do conversível em cima da mesa. “Você não sabe dirigir, o que vai fazer?”, gritou Marcela, passando do ódio à preocupação. A esta altura, ele já colocara o cinto de segurança e apertava o controle remoto para levantar os portões da casa. Enquanto tentava dar partida no carro, Marcela se jogou na cama, abafando um grito com o rosto apertado contra o travesseiro.
“Você sabe dirigir esta joça”, tentou se convencer, suando frio. Falou isto por todas as aulas de auto-escola que teve, e os exames que reprovou. Quando ligou o carro, visualizou o menino, em estado de choque, preso a carcaças de um veículo capotado e salvo por alguém que nunca mais lembraria o rosto. Seus olhos arregalados testemunharam os ossos saltados, e a pele arrancada dos braços, da mãe, embaixo do veículo. Rejeitou essa imagem e, depois de hesitar, partiu, com o carro cambaleando. Rumava para o Oeste.
Tenso, passou para a segunda, terceira marcha e se desdobrou para ligar o som do automóvel e prestar atenção na estrada. Lembrou-se de uma das brincadeiras de Marcela, enquanto o motorista dirigia no banco da frente: mexer em seu pênis, ereto, como se fossem as marchas do carro. Era assim: ele, constrangido, tentava disfarçar e o motorista, sem-graça, fingia não perceber.
O rádio tocava uma balada country. Douglas sentiu como se fosse um recomeço, cada vez que ouvia o refrão. “Se deixa você feliz, não é tão ruim, então por que está tão triste?”. Durante quatro dias, enquanto dirigia, sem dormir, tomar banho ou comer direito, cantou exaustivamente –entre desafinado e eufórico– o mesmo trecho, sem se dar conta que a música havia terminado. Encheu o tanque em um posto de gasolina, seguiu adiante até não saber em que lugar estava, com a mesma roupa e a barba cerrada, azul, características que davam certo ar de atitude ao homem que havia perdido a dignidade. Estacionava em acostamentos, olhava a paisagem, gritava, atirava pedras com força no abismo, mostrava o dedo médio a outros motoristas, arrancava galhos de árvores para destruir placas, mas em todos os lugares via o rosto de Evangeline e se consolava ao pensar que fora muito “bobinha”, ao rejeitar o amor que ele poderia oferecer.
Quando parecia chegar ao topo da montanha, depois de voltar para o carro, constatou que o veículo sofrera uma pane. Não dava partida. Desceu, na escuridão, com objetivo de buscar ajuda, mas estava fraco. No alto da colina, havia uma luz fraca que saía da janela de um casebre apodrecido. Seguiu para lá e, quanto mais andava pela trilha lamacenta e escorregadia, mais preciosa parecia a ajuda. Tropeçou, cortou-se no matagal, desviou-se de cobras, rasgou o terno, ralou o joelho, passou por homens encapuzados que fumavam baseado e se deparou com preconceitos arraigados, ao ver o braço de um deles. “Tatuados não prestam”.
Um homem tentou barrá-lo, mas foi surpreendido pelo grito de uma velha. “Deixem-no em paz! Eu estava à sua espera. Foi Evangeline que o conduziu até aqui!”, disse, autoritária. Douglas, surpreso por escutar o nome que há dias não pronunciava, desmaiou em seus pés, depois de pedir socorro. Enquanto isto, Marcela escrevia uma carta endereçada a Evangeline. Iria se suicidar.
O olhar de Fortuna, de um azul tão puro, denunciava alguém que, há tempos, havia desistido de entender a vida. A aparência da velha índia, com pele bronzeada e cabelos ralos e brancos, assustou Douglas, de forma que ele fingiu continuar desacordado quando voltou a si. Deitado no chão sujo do casebre, cheio de folhas secas e empoeiradas, acordou com a cabeça repousada no colo da mulher, com os cabelos sendo acariciados. “Essas pequenas rejeições que transformam o homem em um cachorro manco... Como admitir que você sente tudo como todo mundo, dependência, medo, dor...”.
Delicadamente, Fortuna se levantou e repousou a cabeça de Douglas no chão sujo, com as duas mãos. Escutou passos e, de olhos cerrados, viu que as mãos dela estendiam a ele uma maçã verde. “Nada sabe sobre a vida, nada sabe sobre o amor. Aceite, está desidratado”. Douglas, tímido, abriu os olhos, agradeceu e deu a primeira mordida na suculenta fruta, com gosto de nada.“Meu carro quebrou na estrada, preciso de ajuda”, disse. A senhora intercedeu, impaciente. “Você só sairá daqui quando escutar toda verdade. Foi Evangeline que o mandou até mim”. “Como ela sabia que eu iria parar aqui? Em que espécie de plano estou envolvido?”.
Fortuna o olhou com sagacidade. “Se continuar dividido entre duas mulheres, será infeliz. Você tem de escolher entre realidade e sonho. Está preso a uma delas, mas hoje irá se libertar”. Brusco, Douglas se levantou. “Não quero escutar mais nada! Vou embora!”. Ela o segurou, com força incomum para uma velha e tom de voz ameaçador. “Quem atira o destino aos sete ventos não deve ficar impune, e sua história foi longe demais!”. Com os braços apertados pelas mãos fortes da velha, Douglas, receoso, sentou-se. Mordeu, resignado, outro pedaço de maçã.
“Você vai sofrer muito até voltar para casa. Passará noites de frio, percorrerá trilhas perigosas, enfrentará tempestades, tudo até aceitar o que o espera a partir de agora. Depois, verá que as coisas não são tão ruins como pensa. E a tempestade se transformará em calmaria. Quando você desceu do carro, meus homens deram um jeito de interceder no automóvel para que parecesse quebrado e você chegasse aqui... Você foi espionado desde o início de sua viagem... Não se preocupe com o carro, eles já estão consertando”, explicou.
As palavras caíam como um soco no estômago de Douglas. “Quando você voltar para casa, Evangeline estará à sua espera. Marcela sairá de vez de sua vida, mas você terá de permitir”, revelou, como se contasse o segredo da vida. “Evangeline é minha aprendiz, nunca foi casada e entrou em sua vida para libertar você de algo que criou. Já Marcela, nunca existiu ou, melhor, só existiu para você. As pessoas tentaram alertá-lo várias vezes, de diversas maneiras, mas você nunca aceitou. Até que elas se adaptaram à sua realidade”.
“E as histórias? Ela escreve livros!”, tentou justificar. Fortuna balançou a cabeça. “Assim como Marcela, os livros são criação sua. Já que não tem talento o suficiente para publicá-los, sua esposa teria dupla função: o frustrado não seria você e, sim, ela. Além disso, ela desfocaria sua sensação de abandono”, levantou-se, para abrir a porta. “Agora, é com você. Vá em paz, e decida-se entre realidade e ilusão”.
Douglas caminhou alguns passos, para hesitar em seguir em frente. Avistou mais de uma centena de homens encapuzados bebericando e conversando em tom de voz baixo, percebeu que se confraternizavam. Estava com a sensação de que lhe foram roubados dez anos de vida, e nunca saberia responder se fora ele próprio, ou a velha que não havia se apresentado e se sentiu no direito de estragar sua vida. Voltou para o casebre disposto a querer sua vida de volta, sem Evangeline e as complicações que ela lhe trouxera.
Furioso, exigiu que Fortuna desmentisse tudo o que havia dito. Impassível, a velha o fitava. Ele, em uma tentativa desesperada, a segurou pelos braços e beijou violentamente aquela boca sem dentes, como se o beijo pudesse recuperar os dez anos perdidos. Se devia alguma coisa a ela, pagaria com o corpo, mas se chocou com o absurdo de sua atitude e limpou os lábios, cheios de saliva, com nojo. Transtornado, começou a cuspir. Fortuna o olhava, sem acreditar: sempre soube que seria assassinada, mas nunca havia se preparado para isto, embora estivesse tão fascinada pelo momento que não ousaria reagir, sequer gritar. Douglas a esganou, com toda força, chamando-a de maldita. Depois de abandoná-la no chão, correu para a calada da noite. Era um assassino. Os homens encapuzados perceberam e começaram a gritar: a profecia se concretizara, a mentora fora assassinada!Procurado pelos homens, que o chamavam entre si de “o predestinado”, Douglas escorregou na trilha e conseguiu escapar porque se escondeu no matagal. Ficou ali, sem se mover, até não escutar mais barulho. Tentaria recuperar o que havia perdido. Como em um quadro de Salvador Dali, Marcela desmanchara. Nunca existira. Evangeline o esperava como uma esposa exemplar, embora não fosse casada com ele. Suas mãos estariam sempre sujas, como a de todos que não cumprem sua parte. Não sabia dirigir, ainda tinha algum dinheiro no bolso, voltaria de Táxi. A vida é muito pratica para perder tempo conjecturando.

Conto #15 - O Relógio

Conto #15 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


O RELÓGIO


Chovia muito naquela noite em que Douglas, um jovem empresário do ramo de informática, voltava de uma reunião de negócios. Douglas estava numa felicidade esfuzian-te, acabara de fechar um super contrato, um contrato que lhe dará a tranquilidade financei-ra, para enfim, casar com Patrícia, da qual é noivo, a mais ou menos sete anos.
Patrícia era apaixonada por Douglas, sentia por ele, um amor incondicional e Dou-glas por sua vez, retribua aquele amor, apaixonadamente. Pareciam que os dois viviam um amor de várias vidas, de tanto que se completavam.
A pressão para que os dois casassem, era constante, mas Douglas e Patrícia, sempre ponderavam, queriam a estabilidade de uma vida segura. Douglas não fugia de suas respon-sabilidades e desde cedo, sempre soube o quis, trabalhar com informática.
Douglas, que nunca foi uma pessoa rica, estudou e trabalhou, e quando menos espe-rava, recebeu a oportunidade de se associar a uma pequena empresa de montagem, manu-tenção e comércio de equipamentos de informática.
Como tudo na vida precisa de muito trabalho, Douglas gerenciava os negócios, tra-balhando em média, dez horas por dia. Tinha vontade de crescer e conseguiu agendar uma reunião com o dono de uma das maiores redes de supermercados de São Paulo, queria for-necer todo o equipamento de informática para todas as lojas da rede.
Ele estava confiante, e partiu para reunião com uma proposta que achava irrecusá-vel. Não deu outra, fechou o contrato. Era a independência financeira, o casamento com Pa-trícia. Deixaria de ser um microempresário, para ser um empresário de verdade. Feliz da vi-da, já sabia tudo que iria fazer. Com o adiantamento que receberia por conta do contrato, iria comprar um belo apartamento e marcar a data do casamento com Patrícia.
A felicidade de Douglas era tamanha, que por distração, acabou errando a entrada para a Rodovia que o levaria em direção à sua cidade e, quando deu por sí, estava trafegan-do em uma estradinha de terra, completamente deserta.
De repente, uma chuva torrencial começa a cair, Douglas passou da felicidade para a agonia, pois rodava e rodova e não conseguia achar um retorno que o levasse à Rodovia principal. Douglas não acreditava no que estava acontecendo, tanta felicidade, tantas novi-dades para contar à Patrícia e ele ali, perdido, em uma estrada de terra, sob uma chuva que aquela altura, já parecia um dilúvio.
Ele respirou fundo e disse para si mesmo – Calma, Douglas! Num dia tão especial como esse, isso é passageiro. Calma, que você encontra a saída.
E aquele dia, que havia sido maravilhoso, se transformou em uma noite de pesadelo, e quando Douglas achava que nada mais tinha pra dar errado, deu. Seu carro começou a pi-pocar, o motor a falhar, ele foi parando, parando, parando e parou!...
Douglas se viu ali, naquela estrada de terra, mal iluminada, sob uma chuva que caia sem cessar, e com o carro quebrado. Sentou-se sobre um pedra e rogou:
- Por quê isso, meu Deus?
Patrícia a essa altura, já estava preocupadíssima, pois após fechar o contrato, Dou-glas a ligou e pediu-lhe que ficasse linda, pois iriam ter uma noite especial. Patrícia saiu do trabalho mais cedo, passou no salão de beleza, fez as unhas, fez escova, se produziu toda para aquela noite tão especial. As horas passavam e nada de Douglas aparecer. Patrícia in-sistia no celular, que insistia em dar caixa postal. Começou a se preocupar, achando que al-go de realmente grave, tinha acontecido com ele.
Sentindo-se perdido, Douglas, aquela altura, era só desespero, nem parecia que tive-ra vivido, o dia mais feliz de sua vida. Mas, como tudo na vida, nada está perdido, no meio
1.
daquela chuvarada, Douglas avistou um ponto de luz, e partiu em direção a ele, pensando que talvez lá houvesse um telefone no qual ele pudesse pedir ajuda, chamar o guincho, avi-sar Patrícia...
Ao se aproximar, avistou um casebre rústico, muito simples, parecia abandonado, pensou em desistir, duvidou que ali houvesse uma alma viva que pudesse lhe ajudar. Telefone então, nem pensar, e ele estava certo. Completamente encharcado, tratou de bater palmas e já quando estava por desistir, foi recebido por uma velhinha muito simpática e que se mostrou muito prestativa, o convidou para entrar em seu humilde casebre e ofereceu-lhe uma toalha para que se enxugasse, um bom prato de comida, e cama para que pudesse des-cansar.
Douglas não achou a idéia de todo mal, pois todo aquele desencontro, acabou por deixá-lo extremamente estressado. Agradeceu e aceitou tudo que lhe fora oferecido por aquela velhinha tão simpática. Após se enxugar, Douglas tratou de tomar aquele prato de sopa quentinha. Enquanto tomava a sopa, pensava ora no contrato que acabara de fechar, ora em Patrícia, que a essa hora, já deveria estar muito preocupada. Mas, uma coisa o intri-gava e o deixava muito preocupado. Como uma velhinha de aparência tão frágil podia viver em um lugar tão distante e sozinha, e não temer o perigo a que se expunha? E se ele fosse um ladrão, um assassino? De repente, a velhinha se aproximou de Douglas, passou-lhe a mão sobre os cabelos e lhe ofereceu uma maça. Douglas, já bastante calmo e certo de que não iria sair dali antes do amanhecer, não pensou duas vezes, pegou a maça e tacou-lhe uma enorme dentada. A velhinha, com um olhar sereno, lhe disse:
- Quando o relógio trocar a noite pelo dia, sua vida terá ficado para trás!
Douglas mal escutou o que a velhinha lhe disse e caiu de sono sobre um velho sofá que mobiliava aquela saleta iluminada por um rabicho de luz pendurado no teto.
Quando amanheceu, Douglas levantou-se todo animado, parecia que tinha dormido anos, procurou pela velhinha, mas, não conseguiu encontrá-la, estranhou o casebre com as portas e janelas abertas, saiu e achou-o mais acabado do qie quando entrou. Saiu em dire-ção ao seu carro, desesperou ao não encontrá-lo. Sem saber o que fazer, não perdeu tempo, achando que seu carro pudesse ter sido roubado, seguiu aquela estradinha e nunca foi tão fácil encontrar a Rodovia, agradeceu aos céus quando um caminhoneiro ofereceu-lhe caro-na. Ao chegar à sua cidade, saiu em disparada ansioso para contar todas as novidades à Pa-trícia.
No caminho, achou que havia algo de estranho no ar, ele notou que a cidade estava diferente. Quando chegou à casa de Patrícia, teve uma grande surpresa, ela não morava lá, ninguém se quer a conhecia. Foi então até a sua casa, não tinha mais casa, no endereço, há-via um edifício de vinte e três andares. Douglas ficou se entender. Partiu para sua loja, e nada! Procurou seus amigos, não achou ninguém. Ninguém o conhecia, ele não conhecia nada. Douglas ficou apavorado. O que teria acontecido? Achou que iria enlouquecer! Ele percorreu todos os lugares, inúmeras e inúmeras vezes, de repente, se deparou com uma fo-lha de jornal solta ao vento e ao interceptá-la, descobriu o inimaginável. Haviam passado dez anos.
Douglas se desesperou! Cético, não acreditava no que estava lendo naquela folha de jornal solta ao vento e rogou por uma explicação:
- Alguém pode me dizer o que aconteceu com a minha vida?
Seus planos, sua vida, tudo estava de pernas para o ar. Onde andará o seu amor da vida inteira? Para aonde levaram a vida que ele sonhou? Douglas estava desconsertado. Co-mo tudo mudou assim tão de repente? Da noite pro dia sua vida ficou pra trás!
Tudo que ele lembrava, era a reunião no dia anterior, do contrato que fechou, do
2.
carro que quebrou, do casebre, da velhinha...
Ele então se lembou das palavras que aquela pobre velhinha simpática, a qual havia encontrado, e que tinha o tratado com tanto carinho lhe havia dito, mas, custou a acreditar que pudesse haver alguma ligação com o que estava lhe acontecendo.
E ao lembrar do momento em que acordou e não encontrou ninguém, bradou:
- Velha feiticeira, roubou dez anos de minha vida! Mas, eu acho você! Nem que seja
no fim do mundo!
Douglas então, partiu em disparada rumo aquela estrada que ele não tinha a mínima idéia onde ficava e nem como faria para localizá-la. Passou dias e dias andando, se defi-nhou, emagreceu, perdeu os sapatos, a barba cresceu, enlouqueceu. A cada dia que passava, viva torcendo para que tivesse outra vez uma noite igual aquela, com muita chuva, que o le-vasse ao encontro daquele lugar, na esperança de que assim, pudesse recuperar os anos que lhe foram roubados.
Até onde se sabe, ninguém nunca soube direito o que aconteceu de verdade e, tal-vez, nunca venham a saber.