28 abril 2006

Conto #14 - Nada Sabes

Conto #14 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


Nada Sabes


“Não, não posso acreditar”, pensou ele, ofegante, ao dar partida no conversível prata. Evidente que não voltaria. Estava desesperado: antes de entrar no casebre era um homem que havia se abandonado à própria sorte. Pouco antes de empurrar a porta e correr para o matagal, na boca da noite, tornara-se um assassino.

Se existiu alguém que nunca transgrediu regras, este era Douglas, empresário bem-sucedido no ramo da agronomia, 35 anos, casado há dez com a exuberante Marcela. Eram o protótipo de casal perfeito, daqueles que se reúnem na mesa durante o café da manhã para discutir assuntos banais enquanto são gentis entre si. Sempre se despediam com um beijo na testa e sorrisos de margarina, antes dele sair para o trabalho, feliz, feliz.
Ambos eram conscientes de que não tinham beleza clássica, mas, com pele branca, cabelos e olhos castanhos levemente ondulados, sabiam que detinham o tipo físico exato para fazer pessoas se apaixonarem, e atrair olhares convidativos ao adultério. Divertiam-se com isto em locais públicos, a ponto de fazerem disso um constante jogo de sedução. “Aquele cara no bar não tira os olhos de você”. “Uhlalá, ainda bem que estou de calcinha”, bufou, antipática, durante uma TPM.
Como se tivessem um pacto, livravam-se com maestria das cantadas da mesma forma sutil e elegante. Faziam-se lindos perante os olhos dos outros e, por este motivo, geravam inveja e torcida, de casais não tão bem-sucedidos no amor, para um possível divórcio. A única diferença era a altura: enquanto Marcela alcançava 1,74 com salto Louis XV, faltavam três centímetros para Douglas chegar a 1,90. Era grandalhão e desengonçado, o que dava uma certa graça à sua aparência, sem deixar de demonstrar o contraste com a delicadeza e classe de Marcela.
O objetivo de crescer ao lado da namorada fez Douglas renunciar ao sonho de viver da escrita para, antes, se estabilizar. Conheceram-se embaixo de um toldo de um Boulevard já fechado no Centro de São Paulo. Douglas emprestou a Marcela o guarda-chuva e, antes de partir, ela lhe retribuiu com o endereço de casa escrito em letras infantis. Horas depois, todo molhado, ele foi buscar o objeto e emplacaram uma discussão sobre guarda-chuvas: segundo ela, o único acessório que não evoluíra. Ele concordou, a partir daí para sempre, e ela lhe emprestou um exemplar de “O apanhador no campo de centeio”, o qual ele considerou mal escrito e, nunca, o hino de uma geração.
Chegou a trabalhar em três empregos para pagar, por si próprio, a universidade de engenharia agrônoma. Tanto esforço atraiu a admiração de mestres e, após o término do curso, foi convidado pelo colega de classe, Camilo, de família muito mais abastada, a montar uma empresa de irrigação de solos. “Eu entro com o capital, você com o trabalho”. Douglas esqueceu da escrita enquanto a micro-empresa se transformava em império. Contentava-se, então, com a típica vida casa-trabalho-trabalho-casa de um casal sem filhos. Seus personagens continuavam adormecidos enquanto as histórias evoluíam sem ser passadas para o papel.
Durante este período, Marcela, que dificilmente saía de casa e, mesmo assim, apenas acompanhada do marido, dividia, com o mesmo empenho, as tarefas de organizar o funcionamento da casa e cuidar de sua forma física. Era comum vê-la trajada com vestidos indianos de cores discretas que denunciavam suas curvas de mulher de revista masculina, e escrever cartas enormes e sentimentais ao marido, amigos e parentes póstumos. “Marcela, não sofre tanto”, alertava Douglas. “Não acredite em tudo que escrevo”, retrucava. Enfim, uma mulher bonita demais que também se dedicava a escrever livros infantis. Pintava aquarelas, fazia colagens, bordava desenhos e os inseria em sofríveis histórias. Esforçada, sem talento e frustrada pela recusa de editoras comerciais em publicar suas obras. Para compensar, Douglas pagava a publicação de livros que entulhavam o quarto de hóspedes e eram distribuídos nos eventos da empresa.
Durante a última festa de fim de ano, regada a champanhe e música eletrônica, enquanto orgulhosamente distribuía exemplares de mais um fracasso editorial, Evangeline o tocou com a ponta dos dedos em suas costas e pediu um livro. Quando seus olhos se cruzaram, soube naquele momento que estava irremediavelmente perdido e, nunca soube explicar, mas só enxergou cor nos lábios da mulher. Era o vermelho da papoula, o resto do corpo estava em preto-e-branco. Como em uma película antiga.
Nunca fora tão inocente a ponto de se deixar envolver por uma desconhecida, cujos traços angelicais, pele clara e cabelos escuros, um pouco acima do peso. Com gestos decididos que a assemelhavam a uma atriz dirigida por Stanley Kubric, apresentou-se como resenhista e, no dia seguinte, telefonou para dizer que precisava conversar sobre o livro. Era a primeira vez que Douglas mentia para Marcela, e foi encontrá-la durante o horário de almoço. Foi a pé. Dirigir, nunca.
Ele amou Evangeline mais uma vez quando a viu, linda na praça arborizada que ficava em frente à capela na rua de trás de sua empresa, com terninho preto e livro nas mãos, esperando, impaciente, por ele. Foi o momento mais lírico de sua vida. Não demorou muito para a conversa evoluir, de literatura para amor, de idílio para a confissão de que era casada com um dos funcionários da empresa, que já o observava e havia estudado detalhadamente como se aproximar dele, e que iria libertá-lo. Daí para a concretização do ato sexual foi instantâneo.
Jamais se entregou tanto e fora tão verdadeiro. Fitou seus olhos e perguntou se estava sendo sincera, foi patético quando pediu para que não o machucasse. Estava quebrando regras, sentindo-se livre, mas sabia que sua vida havia acabado a partir daquele momento. Quando ela foi embora, ficou desorientado, sem chão.
“O pior abandono é entregar sua vida nas mãos de quem não lhe dá a mínima”, pensou, algum tempo depois. Havia se tornado refém de uma história, e das vontades de Evangeline. A percepção disto veio após ligar diversas vezes ao seu número de celular, e ela não retornar, mandar mensagens que discorriam sobre seu sentimento, e não receber resposta. “Tudo é ‘emo’, relaxa! Além disso, estamos em ritmos diferentes”, esquivou-se.
O segundo encontro ocorreu por muita insistência da parte dele, e bastou o primeiro beijo para levá-lo ao orgasmo. Desesperado, queria sugar o néctar da vida: foi brusco, teve prazer equivalente a uma overdose causada por um pico na veia. O fato é que estava viciado nela.
“Ela foi uma atriz”, lamentava-se, enquanto chorava pelos cantos. Diante disto, não olhava mais para os olhos de Marcela, sequer se concentrava no trabalho. “Tira umas férias”, aconselhou Camilo. Douglas, então, contou o que estava acontecendo e, intimamente, Camilo ficou contente ao constatar que a farsa do casal perfeito chegava ao fim. “Você está se comportando como um amador!”. O problema é que Douglas era um principiante na arte de amar: apenas queria saber de Evangeline. Antes dela, não olhava para os lados. Agora, se policiava para não reparar em mais ninguém. E esta obsessão fazia com que sofresse com a possibilidade dela ficar com outros homens. “Eu me coloquei nesse buraco e terei de ser egoísta a ponto de sair sozinho dele”, afirmou, categórico.
Cada um fica com sua verdade e razão: sempre seria as palavras de um contra o outro. A verdade é que a vida de Evangeline era cheia de cobranças. Ela esperava em Douglas um pouco de leveza, mas encontrou-se diante de um homem mais problemático do que aparentava e que, infelizmente, se apaixonara por ela. Ela o amara, sim, quando o encantamento foi mais forte, e seria assim, se ele não descumprisse a combinação de não atrapalhar seus planos. “Se você me ama de verdade, vá, de carro, ao ponto mais alto da montanha à Oeste de sua casa. Se tiver coragem, serei sua”.
Com o coração disparado, seguiu para casa e esperou que Marcela sentasse ao lado dele para sentir a brisa na sacada. Perguntou a ela se estava feliz. “Nunca cheguei a apenas estar”, disse, enquanto acariciava ternamente o rosto do marido. Então, ele chorou abraçado a ela, que sempre achara comovente quando um homem derramava lágrimas a ponto de soluçar. Era uma dor brusca, incontida, como se fosse o peso de todas as dores do mundo em suas costas.
Minutos depois, quando ele entregou um cartão de banco, não entendeu. Lembrou-se do primeiro desenho que Douglas a havia dedicado. Um globo terrestre mal desenhado com a palavra “você” escrita ao meio. “Vendi minha parte na empresa para o Camilo. Aqui tem dinheiro suficiente para que você viva confortavelmente para o resto da vida. Vou embora”. Marcela pensou que se tratava de mais uma das brincadeiras sem-graça do marido, mas Douglas se levantou rapidamente e foi se vestir com o primeiro terno que encontrasse. O azul-marinho.
Pela primeira vez, sentiu falta de uma roupa mais esportiva, vestiu-se sem os cuidados habituais e a esposa alterou a voz, tentando feri-lo. “Você cheira a remédio!”, disse, em mais um de seus rompantes de severidade, referindo-se ao sabonete de enxofre que ele usava para tratar coceiras no púbis. Douglas desceu as escadas correndo, e pegou a chave do conversível em cima da mesa. “Você não sabe dirigir, o que vai fazer?”, gritou Marcela, passando do ódio à preocupação. A esta altura, ele já colocara o cinto de segurança e apertava o controle remoto para levantar os portões da casa. Enquanto tentava dar partida no carro, Marcela se jogou na cama, abafando um grito com o rosto apertado contra o travesseiro.
“Você sabe dirigir esta joça”, tentou se convencer, suando frio. Falou isto por todas as aulas de auto-escola que teve, e os exames que reprovou. Quando ligou o carro, visualizou o menino, em estado de choque, preso a carcaças de um veículo capotado e salvo por alguém que nunca mais lembraria o rosto. Seus olhos arregalados testemunharam os ossos saltados, e a pele arrancada dos braços, da mãe, embaixo do veículo. Rejeitou essa imagem e, depois de hesitar, partiu, com o carro cambaleando. Rumava para o Oeste.
Tenso, passou para a segunda, terceira marcha e se desdobrou para ligar o som do automóvel e prestar atenção na estrada. Lembrou-se de uma das brincadeiras de Marcela, enquanto o motorista dirigia no banco da frente: mexer em seu pênis, ereto, como se fossem as marchas do carro. Era assim: ele, constrangido, tentava disfarçar e o motorista, sem-graça, fingia não perceber.
O rádio tocava uma balada country. Douglas sentiu como se fosse um recomeço, cada vez que ouvia o refrão. “Se deixa você feliz, não é tão ruim, então por que está tão triste?”. Durante quatro dias, enquanto dirigia, sem dormir, tomar banho ou comer direito, cantou exaustivamente –entre desafinado e eufórico– o mesmo trecho, sem se dar conta que a música havia terminado. Encheu o tanque em um posto de gasolina, seguiu adiante até não saber em que lugar estava, com a mesma roupa e a barba cerrada, azul, características que davam certo ar de atitude ao homem que havia perdido a dignidade. Estacionava em acostamentos, olhava a paisagem, gritava, atirava pedras com força no abismo, mostrava o dedo médio a outros motoristas, arrancava galhos de árvores para destruir placas, mas em todos os lugares via o rosto de Evangeline e se consolava ao pensar que fora muito “bobinha”, ao rejeitar o amor que ele poderia oferecer.
Quando parecia chegar ao topo da montanha, depois de voltar para o carro, constatou que o veículo sofrera uma pane. Não dava partida. Desceu, na escuridão, com objetivo de buscar ajuda, mas estava fraco. No alto da colina, havia uma luz fraca que saía da janela de um casebre apodrecido. Seguiu para lá e, quanto mais andava pela trilha lamacenta e escorregadia, mais preciosa parecia a ajuda. Tropeçou, cortou-se no matagal, desviou-se de cobras, rasgou o terno, ralou o joelho, passou por homens encapuzados que fumavam baseado e se deparou com preconceitos arraigados, ao ver o braço de um deles. “Tatuados não prestam”.
Um homem tentou barrá-lo, mas foi surpreendido pelo grito de uma velha. “Deixem-no em paz! Eu estava à sua espera. Foi Evangeline que o conduziu até aqui!”, disse, autoritária. Douglas, surpreso por escutar o nome que há dias não pronunciava, desmaiou em seus pés, depois de pedir socorro. Enquanto isto, Marcela escrevia uma carta endereçada a Evangeline. Iria se suicidar.
O olhar de Fortuna, de um azul tão puro, denunciava alguém que, há tempos, havia desistido de entender a vida. A aparência da velha índia, com pele bronzeada e cabelos ralos e brancos, assustou Douglas, de forma que ele fingiu continuar desacordado quando voltou a si. Deitado no chão sujo do casebre, cheio de folhas secas e empoeiradas, acordou com a cabeça repousada no colo da mulher, com os cabelos sendo acariciados. “Essas pequenas rejeições que transformam o homem em um cachorro manco... Como admitir que você sente tudo como todo mundo, dependência, medo, dor...”.
Delicadamente, Fortuna se levantou e repousou a cabeça de Douglas no chão sujo, com as duas mãos. Escutou passos e, de olhos cerrados, viu que as mãos dela estendiam a ele uma maçã verde. “Nada sabe sobre a vida, nada sabe sobre o amor. Aceite, está desidratado”. Douglas, tímido, abriu os olhos, agradeceu e deu a primeira mordida na suculenta fruta, com gosto de nada.“Meu carro quebrou na estrada, preciso de ajuda”, disse. A senhora intercedeu, impaciente. “Você só sairá daqui quando escutar toda verdade. Foi Evangeline que o mandou até mim”. “Como ela sabia que eu iria parar aqui? Em que espécie de plano estou envolvido?”.
Fortuna o olhou com sagacidade. “Se continuar dividido entre duas mulheres, será infeliz. Você tem de escolher entre realidade e sonho. Está preso a uma delas, mas hoje irá se libertar”. Brusco, Douglas se levantou. “Não quero escutar mais nada! Vou embora!”. Ela o segurou, com força incomum para uma velha e tom de voz ameaçador. “Quem atira o destino aos sete ventos não deve ficar impune, e sua história foi longe demais!”. Com os braços apertados pelas mãos fortes da velha, Douglas, receoso, sentou-se. Mordeu, resignado, outro pedaço de maçã.
“Você vai sofrer muito até voltar para casa. Passará noites de frio, percorrerá trilhas perigosas, enfrentará tempestades, tudo até aceitar o que o espera a partir de agora. Depois, verá que as coisas não são tão ruins como pensa. E a tempestade se transformará em calmaria. Quando você desceu do carro, meus homens deram um jeito de interceder no automóvel para que parecesse quebrado e você chegasse aqui... Você foi espionado desde o início de sua viagem... Não se preocupe com o carro, eles já estão consertando”, explicou.
As palavras caíam como um soco no estômago de Douglas. “Quando você voltar para casa, Evangeline estará à sua espera. Marcela sairá de vez de sua vida, mas você terá de permitir”, revelou, como se contasse o segredo da vida. “Evangeline é minha aprendiz, nunca foi casada e entrou em sua vida para libertar você de algo que criou. Já Marcela, nunca existiu ou, melhor, só existiu para você. As pessoas tentaram alertá-lo várias vezes, de diversas maneiras, mas você nunca aceitou. Até que elas se adaptaram à sua realidade”.
“E as histórias? Ela escreve livros!”, tentou justificar. Fortuna balançou a cabeça. “Assim como Marcela, os livros são criação sua. Já que não tem talento o suficiente para publicá-los, sua esposa teria dupla função: o frustrado não seria você e, sim, ela. Além disso, ela desfocaria sua sensação de abandono”, levantou-se, para abrir a porta. “Agora, é com você. Vá em paz, e decida-se entre realidade e ilusão”.
Douglas caminhou alguns passos, para hesitar em seguir em frente. Avistou mais de uma centena de homens encapuzados bebericando e conversando em tom de voz baixo, percebeu que se confraternizavam. Estava com a sensação de que lhe foram roubados dez anos de vida, e nunca saberia responder se fora ele próprio, ou a velha que não havia se apresentado e se sentiu no direito de estragar sua vida. Voltou para o casebre disposto a querer sua vida de volta, sem Evangeline e as complicações que ela lhe trouxera.
Furioso, exigiu que Fortuna desmentisse tudo o que havia dito. Impassível, a velha o fitava. Ele, em uma tentativa desesperada, a segurou pelos braços e beijou violentamente aquela boca sem dentes, como se o beijo pudesse recuperar os dez anos perdidos. Se devia alguma coisa a ela, pagaria com o corpo, mas se chocou com o absurdo de sua atitude e limpou os lábios, cheios de saliva, com nojo. Transtornado, começou a cuspir. Fortuna o olhava, sem acreditar: sempre soube que seria assassinada, mas nunca havia se preparado para isto, embora estivesse tão fascinada pelo momento que não ousaria reagir, sequer gritar. Douglas a esganou, com toda força, chamando-a de maldita. Depois de abandoná-la no chão, correu para a calada da noite. Era um assassino. Os homens encapuzados perceberam e começaram a gritar: a profecia se concretizara, a mentora fora assassinada!Procurado pelos homens, que o chamavam entre si de “o predestinado”, Douglas escorregou na trilha e conseguiu escapar porque se escondeu no matagal. Ficou ali, sem se mover, até não escutar mais barulho. Tentaria recuperar o que havia perdido. Como em um quadro de Salvador Dali, Marcela desmanchara. Nunca existira. Evangeline o esperava como uma esposa exemplar, embora não fosse casada com ele. Suas mãos estariam sempre sujas, como a de todos que não cumprem sua parte. Não sabia dirigir, ainda tinha algum dinheiro no bolso, voltaria de Táxi. A vida é muito pratica para perder tempo conjecturando.

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