30 abril 2006

Conto #7 - A Vila do Asfalto Quente

Conto #7 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


A Vila do Asfalto Quente


Lorena tinha apenas 10 anos quando Douglas chegou. Era um dia radiante, com poucas nuvens no céu e um calor quase que insuportável. Sua avó, de pele quase negra de sol, parecia nem sentir os efeitos do calor estonteante. A mãe de Lorena não suportava isso, vivia reclamando do calor e do lugar em que moravam. Ela dizia que o asfalto da estrada em frente à sua casa só aumentava o “bafo” no ar que respiravam. O pai de Lorena faleceu antes dela nascer, pelo mesmo motivo que a mãe morreria anos depois, atropelamento de caminhão. A avó se consolava dizendo que pelo menos eles morreram perto de casa, mas Lorena não gostava desta idéia.
A cidade em que moram nem existe no mapa ainda, de tão pequena. Na verdade, nem chega a ser uma cidade, afinal de contas não tem igreja nem pracinha com coreto. O que ocorre é um aglutinado de casas na beira da estrada, construídas com restos de materiais de construção deixados pelos caminhões tombados, que liga o nada a lugar algum. Esse amontoado de casebres é conhecido pelas cidades vizinhas como a “Vila do Asfalto Quente”.
Pelo apelido percebe-se a Vila do Asfalto Quente não é vista com bons olhos. Isso porque muitos anos atrás, após uma rebelião no presídio da Cidade Grande, muitos presos fugiram para a longínqua região e se misturaram aos habitantes das cidades. Contudo, pouco a pouco, eles foram identificados e expulsos das mais diversas maneiras dos lugares em que haviam se estabelecido. Os moradores, de uma maneira ou de outra, acabavam descobrindo a origem dos maltrapilhos e queimavam-lhe os pertences. Como eram expulsos subitamente e acabavam ficando sem nada, a única saída era caminhar pela estrada.
Aos poucos foram se fixando ali e em alguns anos a Vila do Asfalto Quente já contava com mais de cinqüenta casas. Alguns diziam que a vila carregava o carma dos que iniciaram o povoado e todos os que morassem ali pagariam pelos pecados de seus antecessores. Mas Lorena não acreditava muito nisso. Ela gostava de morar na Vila do Asfalto Quente. Lá havia muito espaço para brincar, havia uma escolinha que acabara de ser inaugurada por um recém chegado e sempre apareciam pessoas com novidades excitantes.
As duas saíram cedo naquele dia. Elas vivem de vender as maçãs que trazem da Cidade Grande. A avó de Lorena sabe fazer uma “maçã do amor” que é infalível. Basta dar uma mordida e oferecer um pedaço para a pessoa amada. Se ela comer da maçã, suas almas se unirão para sempre. Pelo menos é isso que dizem no povoado. Elas tinham um longo caminho a percorrer e Lorena ainda deveria ir à escola. Ao saírem de casa se depararam com Douglas enfurecido ao lado de seu belo carro vermelho que, agora, possuía um motor italiano de oito cilindros completamente fundidos.
Ele estava xingando um aparelho preto que colocava a todo instante no ouvido. Apertava ele com a ponta do dedo em diversos lugares e tornava a colocar no ouvido. Esperava um pouco e gritava. Lorena e sua Avó ficaram impressionadas com a cena. Na verdade estavam passadas de medo. A avó puxou Lorena para trás de si, que não conseguia tirar os olhos do belo Douglas ardendo em nervos. A raiva dele era impressionante. Sua face estava corada pelo excesso de sangue que jazia nos vasos de sua cabeça. Os nervos saltavam e os olhos pareciam ter vida própria.
Lorena e sua Avó não se mexiam. Elas ficaram paralisadas por alguns minutos com a esperança de que Douglas não as percebesse. Mas os olhos rápidos do bem sucedido empresário não se deixaram enganar. Um frio impressionante percorreu a espinha da velha, que quase teve um colapso, no momento em que sua vista encontrou com a de Douglas. Era muito cedo, o dia acabara de amanhecer e não havia ninguém por perto para ajudar.
Douglas avistou a velha, guardou o aparelho preto e passou a mão na face como quem limpa a sujeira do rosto. Andou calmamente até a senhora e perguntou se havia algum telefone na região. A resposta negativa o paralisou. A velha ofereceu uma maçã e aconselhou ele a se acalmar para não ter um “troço”. A explosão de raiva fez com que ele expelisse um grito dos mais altos que já havia dado em toda sua vida. Douglas gritou por quase dois minutos inteiros acordando toda a cidadela. O ruído da raiva só parou quando o ar de seus pulmões acabou, fazendo-o desmaiar.
Lorena e sua Avó o trouxeram para dentro de casa. Um curandeiro da Vila foi acionado para cuidar do homem. Ele ficou três dias inteiros deitado na cama sem se mexer. Como suas roupas já cheiravam muito mal, resolveram trocá-lo. O belo terno serviu de matéria prima para o conjuntinho que fora confeccionado e dado de presente à Lorena em seu aniversário de onze anos. Quando acordou, Douglas se deparou com a receptividade de Lorena e daquela velha, que por algum motivo resolvera cuidar dele. O excesso de stress fez com que seus neurônios fundissem da mesma maneira que o motor ítalo de seu carro. Ele já não sabia de onde viera e nem quem era. Sabia apenas seu primeiro nome e que agora morava na Vila do Asfalto Quente.
Douglas ajudou a reformar o casebre da Velha e adotou Lorena como uma irmã. Levava-a para cima e para baixo, ensinava matemática e o abecedário e ajudava a velha na distribuição das maçãs. Suas aptidões intelectuais concederam-no o cargo de diretor da escolinha da Vila, cargo que ele administrou com muita responsabilidade. Em cinco anos já havia ensinado três professores e contava com mais de setenta alunos, dentre crianças, velhos e adultos, sempre separados em salas diferentes de acordo com a faixa etária.
A prosperidade da escolinha e o espírito de liderança fizeram com que ele se tornasse o novo prefeito da Vila do Asfalto Quente. Sua primeira ação como representante do poder executivo foi controlar a entrada de visitantes, principalmente os que vinham pela estrada. A imagem da comunidade começou a melhorar muito após esta atitude. Muitos larápios não poderiam mais se refugiar na vila, que agora começava a se tornar um lugar melhor. A maioria dos moradores gostava de Douglas, mas alguns o rejeitavam. Afinal de contas, como pode alguém que chegou pelo asfalto quente, vir aqui, mudar tudo e querer barrar os que vêm da estrada. Muitas coisas boas chegaram na vila pelo asfalto. Tijolos, telhas, cimento, areia, potes e potes de leite em pó, um carregamento inteiro de tuperware, das mais diversas cores, e até algumas figuras ilustres como Douglas. Não se pode abrir mão do principal meio de comunicação com o resto do mundo, só porque meia dúzia de usurpadores apareceram nestes anos todos.
Apesar da resistência de alguns, Douglas conseguiu se estabelecer como prefeito e organizou muita coisa na cidade. A Avó já era a maior vendedora de maçãs do amor da região, sem precisar sair de casa, e Lorena era a mulher mais cobiçada da cidade no auge dos seus vinte anos. Os casebres foram desaparecendo e dando lugar a casas mais resistentes construídas com material doado pelas cidades vizinhas. Douglas efetivou bons contatos no meio do nada.
Conforme estabelecido no primeiro ano de mandato, todo visitante que chegasse pelo asfalto deveria comparecer no gabinete de Douglas e passar por uma aceitação pública na pracinha improvisada. Se os habitantes aceitassem, o visitante poderia ficar. Antes da votação, Douglas fazia uma entrevista com o requerente e discursava aos demais a procedência do visitante. Muitas figuras passaram pela pequena praça, a maioria fora rejeitada.
Hoje Douglas terá de apresentar Carlos, que chegou de carro importado e foi encaminhado até o gabinete por Lorena. Eles se conheceram em uma festinha da cidade vizinha e estão perdidamente apaixonados. Carlos quer ter o direito de visitar Lorena aos finais de semana, mas para isso precisa do aval dos moradores da cidade. Douglas o interroga por quatro horas inteiras. Além de saber mais sobre o visitante ele precisa descobrir o que realmente quer com sua irmã. A velha o acha lindo e torce para que case com Lorena, afinal de contas ambos comeram a maçã.
Douglas acaba gostando do nobre rapaz e ao final da entrevista o convida para tomar “um quente” no bar da Vila, antes de apresenta-lo à população. “O quente” é um destilado de cana engarrafado e curtido com escorpiões. Bebida característica da Vila do Asfalto Quente, possui um sabor único. Durante a conversa de bar, Carlos recebe uma ligação em seu moderno aparelho celular. Douglas fica estonteado com a novidade. A ligação cai e Carlos explica que o sinal aqui é muito ruim. Ele caminha para perto de seu carro vermelho estacionado à beira da estrada na esperança de conseguir algum sinal.
Aperta uma série de teclas, coloca o aparelho na orelha, volta a apertar as teclas, estica uma antena, torna a colocar na orelha, fala algo, mas não obtém resposta. Neste instante Lorena pensa já ter visto esta cena antes. Douglas levanta perplexo. Caminha para o meio da estrada fitando o rapaz. Permanece ali, no meio do asfalto, olhando para todos como se fossem desconhecidos. Sua face fica corada devido ao volume de sangue que preenche rapidamente as veias de seu rosto. Os nervos parecem mais protuberantes do que o normal, o suor melado escorre quente pela testa, seus olhos ardem em chamas pelas veias estouradas.Uma pequena multidão se forma na beira do asfalto, todos gritando e gesticulando muito. Os tímpanos de Douglas já estouraram de tão alta pressão. E é surdo, com os nervos à flor da pele e com a face deformada pelos movimentos involuntários dos músculos que ele levanta os braços contraídos e solta o grito mais alto de sua vida. Grita da maneira mais grave que já havia gritado antes. O som da expressão de sua raiva só é cessado quando seus pulmões se enchem do sangue que penetrou através das perfurações ocasionadas pelas costelas quebradas no impacto com o pára-choque do caminhão-tanque.

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