29 abril 2006

Conto #11 - Douglas

Conto #11 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


Douglas


(Você ainda vai se dar mal! Você ainda vai se dar muito mal!)
Douglas bateu o capô do Corcel com força, ao mesmo tempo em que soltou um palavrão.
Não que adiantasse muito, pois se encontrava sozinho.
Para onde quer que olhasse, apenas aquela estradinha de terra batida e mato.
Isto nunca lhe havia acontecido antes.
(Você ainda vai se dar mal! É uma questão de tempo!)
A voz do Arantes, seu sócio na firma de representação e vendas, ia e vinha dentro de sua cabeça.
O hábito de Douglas de se utilizar daquelas estradinhas, de atalhos pouco conhecidos e caminhos clandestinos que encurtavam as distâncias, era notório.
Se ele podia ir do ponto A ao ponto B em uma hora e quarenta, por que faria o mesmo
em duas horas?
Às vezes, vinte minutos era a diferença entre fechar um negócio ou ficar chupando o dedo.
Resignado, mas nem tanto, sentou-se ao pára-choque... e disse outro palavrão.
Esperaria uma eternidade até que passasse alguém que lhe desse carona.
Um caminhão, uma carroça transportando leite, mesmo um garoto numa bicicleta bastavam.
Pensava na fragilidade dos carros modernos quando percebeu que não estava assim tão só.
Na outra margem, a uns cem metros de onde estava, enxergou uma vendedora de beira de estrada com seu tabuleiro. Estranhou que não a tivesse visto antes.
Douglas riu do ridículo daquela situação.
Ele não conseguiria uma carona assim como ela não venderia nada.
Mas ela estava ali todos os dias; ele não.
Passada quase uma hora, decidiu ver o que ela tinha para vender e foi até lá.
A pobre mulher encarquilhada tinha uma corcunda maior que o sujeito de Notre Dame. O corpo estava coberto por várias camadas de roupas, vários casacos e saias sobrepostas.
À volta da cabeça, um lenço que deixava de fora apenas os olhos, o nariz, a boca fina e o queixo – e mesmo o pouco que era visível não oferecia uma visão agradável.
Parecia ter a pele encardida e os olhos sem-vida.
No tabuleiro à sua frente, sobre um caixote, se via uma dúzia, não mais, de maçãs.
As maçãs também não eram apetitosas.
Chegou perto o bastante para que ela o ouvisse:
-Meu carro enguiçou, disse Douglas. A que distância fica a cidade mais próxima?
A velha levantou os olhos em sua direção e da sua boca, quase sem dentes, ouviu-se:
-Maçãs?
-Não, obrigado. A cidade mais próxima fica em que direção?
Como da primeira vez:
-Maçãs?
Percebeu que estava perdendo seu tempo com a retardada.
Andou para um lado, andou para outro.
Que vida estúpida, pensou. Com uma agenda lotada, com tanto para fazer, e ele ali...
Voltou para o carro e sentou-se ao banco do motorista.
Se havia um tempo para expiar todos os seus pecados, era aquele, mas não sentia vontade para tanto. Aliás, nunca pensava nisso.
Experimentou o rádio: apenas chiados.
Tirou a gravata, afrouxou os botões da camisa. Saiu do carro.
Chutou algumas pedras na estrada, colheu flores silvestres, amassou-as, deitou-se no meio do caminho, olhando fixamente o céu azul. Tirou um cochilo, acordou e dormiu de novo.
A tarde marchava sem piedade.
Quando se viu, estava sentado numa pedra, ao lado da velha.
-Maçãs?
.Nuvens escuras desabrochavam no horizonte e um vento incômodo anunciou uma drástica mudança a caminho.
A velha foi a primeira a reagir.
Levantou-se sem dificuldade, recolheu as maçãs no bojo da saia e pôs o tabuleiro sob o braço. Sem nenhuma cerimônia, caminhou para dentro do mato alto que delimitava a estrada de terra.
O vento tornou-se mais forte, levantando a poeira em torvelinhos.
A velha já ia longe, quando Douglas resolveu segui-la.
Um casebre escorado por uma figueira surgiu de dentro da vegetação alta..
Era feito de todo tipo de material, principalmente daquilo que se joga no lixo
Entrou.
A velha acendia um fogareiro feito de um latão cortado e não pareceu se incomodar com ele. O único móvel perceptível era a cama à direita, na verdade um estrado de ferro sobre tijolos e coberto de panos.
Placas de trânsito e calotas de carro decoravam as paredes.
Douglas sentou-se no mesmo instante que a chuva passou a tamborilar no teto.
Logo algumas poças denunciaram goteiras e a velha recolheu-se à cama.
Ninguém iria acreditar naquilo quando ele contasse mais tarde, mas o Arantes provavelmente se gabaria de ter previsto tudo aquilo.
(Você um dia ainda vai se dar mal!)
O Arantes sempre viajava de ônibus, nunca se arriscava, levava foto dos filhos e da esposa na carteira e não dormia fora de casa.
Não à toa era um vendedor três estrelas enquanto Douglas chegara rápido às cinco.
Olhou seus sapatos sujos pela poeira.
Aquilo era demais!
Sempre tivera muito zelo pela sua aparência; os fregueses gostavam de uma pessoa bem vestida. Tirou um lenço do bolso e passou a limpá-los.
Quando estavam bem limpos lembrou-se das garrafas de vinho, presenteadas por um cliente, que guardara na mala.
Mesmo enfrentando a escuridão e a chuva, saiu do casebre indo até o carro.
Nem se dera conta até então de tê-lo abandonado.
Que se dane! Era o carro da empresa, tinha seguro!
Pegou o embrulho de presente e voltou pelo mesmo caminho sem quase conseguir ver o casebre debaixo de tanta chuva.
Quando entrou, percebeu que a velha usava de um baralho de cartas.
Lembrou-se do pôquer de sexta com o pessoal da contabilidade.
Quase sentia o cheiro dos charutos, a fumaça adocicada impregnando tudo.
Com o canivete de bolso, abriu o merlot.
Sentou-se ao chão duro e sedento, engoliu metade do conteúdo da garrafa de uma só vez...
Depois brindou sozinho às festas de fim de ano na empresa... às secretárias quarentonas, desesperadas por sexo e álcool.
A velha colocava cartas sobre a cama.
- Vai ler a minha sorte, vovó?
Ela indicou a extremidade da cama, convidando-o para se sentar.
A penumbra proporcionada pelo fogareiro dificultava identificar as cartas.
Não parecia um baralho comum.
- Quer saber seu futuro? Perguntou a velha com uma voz baixa, mas firme.
- Eu tenho bastante tempo pra perder... E o meu futuro? Eu vou ficar rico?
- Sim... Muito dinheiro e poder. Presidente de empresa... Sim.
- Tá brincando...
A velha virava algumas cartas e substituía outras.
- Viagens ao exterior... Prestígio e reconhecimento.
Douglas abriu a última garrafa, um vinho não muito bom, vinagrento.
-Vai falando, velha, que eu tô gostando!
- Uma pessoa no seu caminho... alguém vai escurecer tua luz ...nada bom...
- Como assim?
- Perdendo dinheiro, pessoas se afastam... perde razão e então...
- O que acontece?
- Muito ruim...você foge, passa muito tempo desaparecido,... seus conhecidos se voltam contra você... perde tudo...
Douglas riu e acabou bebendo o resto do vinho amargo, ficando sonolento.
(Você ainda vai se dar mal!)
Maldito Arantes, velho imbecil.

Os raios de sol que penetravam pelas frestas aquecem o rosto de Douglas, caído ao chão. Despertou confuso, sem saber quanto tempo passara dormindo.
Um dia de sol forte aguardava por ele, lá fora, e para sua surpresa o carro desaparecera.
Sem escolha, passou a andar pela estrada.
Dois quilômetros depois, um sujeito de moto aparece e concorda em lhe dar carona, por alguns trocados.
Na rodoviária pega um ônibus para a capital e depois um táxi para casa.
O porteiro de seu flat não era o mesmo de sempre, mas não se importou com isso.
Precisava de um bom banho, colocar roupas limpas e...
Quando se encaminha para o hall de entrada, dois homens surgem em seu caminho.
- Por favor, retire-se do prédio imediatamente! Disse um deles, barrando-lhe.
- Eu moro aqui!
- Vamos chamar a polícia se insistir! disse o outro muito nervoso.
Nunca vira aqueles sujeitos antes.
- Qual é o problema? Eu moro no vigésimo quarto andar!
O sujeito nervoso, que secava a testa com um lenço, replicou:
- Não queremos complicação! Por favor vá embora!
Douglas, mais extenuado do que irritado, resolve ir até a firma.
Segue de táxi até o prédio que bem conhece.
No elevador pensou, pela primeira vez, nos acontecimentos do dia anterior e na velha das maçãs. A secretária na recepção não conteve um grito ao vê-lo.
- O que foi Julinha? A gente não pode ficar algum tempo fora? Perguntou, sorrindo de passagem.
Devia estar mesmo bastante desalinhado, pois todos o olhavam com notável espanto.
Acenou para os conhecidos que paravam atônitos.
Somente ao entrar em sua sala Douglas teve sua vez de surpreender-se também.
Um rapaz loiro estava sentado na sua mesa, que, por sinal, fora trocada por outra, de vidro azul.
E as paredes haviam sido pintadas! Alguém colocara vasos com plantas junto das janelas e... aquilo não podia estar acontecendo!
No calendário da parede a data também estava errada, pelo menos com dez anos de erro!
Mal teve tempo para tomar qualquer atitude.
Dois policiais fardados o agarraram por trás e logo estava algemado e sendo preso.
Jogado em uma cela, Douglas lutava contra a sensação de estar sonhando, de estar experimentando outra realidade.
Um homem alto e de cabelos despenteados, se apresentou como delegado:
- Finalmente nós o pegamos! E dizem por aí que gente rica nunca é presa!
- Deve ter havido um engano... vocês pegaram a pessoa errada!
- Achou mesmo que ia escapar? Reconheceram você no seu antigo endereço, foi uma grande estupidez ter aparecido por lá!
- Qual o problema de vocês? Me chamo Douglas...
O delegado tira do bolso um papel dobrado e lhe entrega.
Sob o título de “Fugitivos procurados”, o rosto de olhos fixos no vazio, uma fotografia ruim retirada de um documento qualquer, mas que sem dúvida, estampava seu rosto.
“...assassinato... culpado pela morte de Arantes da Silva, funcionário da empresa onde o procurado era presidente, Douglas-de-tal se encontra foragido...carro encontrado numa estrada vicinal... qualquer informação que leve à sua captura...”
- Você devia odiar o sujeito para matá-lo daquela maneira! Comentou o delegado com desprezo. Mas um dia nós iríamos pegá-lo. Era apenas uma questão de tempo para você se dar mal.
- Eu sei, balbuciou Douglas com os olhos sem-vida, eu sei.

FIM.

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