27 abril 2006

Conto#19 - Você pode dizer o que você quiser

Conto #19 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)
Você pode dizer o que você quiser


Você pode dizer o que você quiser, cara. Pode dizer que não acredita em mim, tudo bem, não faz diferença. Pode dizer por exemplo: você bebeu. E você sabe, cara, que eu não bebo. E que a única vez que eu fumei maconha eu achei nojento porque, você também sabe, fica aquela guimba fedorenta passando de boca em boca. Tenho nojo. Posso continuar? Não. Não bebo refrigerante, esqueceu? Pede um suco de uva pra mim. Sem açúcar.
Peguei o carro. Tá, tá legal. Não, eu não tava cansado, não. Dormi a noite inteira. E nem precisei tomar comprimido. Dormi legal. Acordei, lavei o rosto, escovei dente, vesti a roupa, tomei café e fui pra empresa. Tô te falando! Você não acredita? Tá, tá. Mas posso continuar? Então. Dispensei o motorista porque eu não estava com vontade ver ninguém. Cansei, cara. Cansei de ver cara de gente. Motorista, secretária, boy, a mocinha que serve o café, funcionário imbecil, o manobrista da garagem. Cansei, cara. Não, não estava com sono. Pois é. Deu meio-dia e fui pra garagem. Entrei no carro.
Não abri vidros, mas liguei o som. Acho que numa rádio. Não sei qual. Uma rádio. Dessas que só toca notícia. Não, não me lembro de notícia nenhuma. Sei lá, cara. Mas escuta, pô! Coloquei o carro pra funcionar. E liguei o ar-condicionado. No máximo. Tava calor. E fui embora. Na saída, ainda pensei, olhando para a cara do idiota do boçal do doente do retardado do débil mental do manobrista da garagem que, pô, não tirava os olhos de mim:

— Vou vender esse troço dessa empresa e me mandar pro Marrocos.

E pensei mais: danem-se as reuniões. Dane-se a secretária com cara de quem brigou com o marido. Dane-se o Frederico que já acorda, às seis da manhã, com aquela cara “Sou competente”. Ele deve se olhar no espelho, lá na sua casa, e dizer: “Sou competente". Cara. Detesto gente assim. Detesto gente que quer ser competente. Vou demitir esse cara. Aliás, vou vender esse troço, essa empresa. Vou me mandar pro Marrocos. E daí? Ah. Tá. Atravessei a cidade e peguei a estrada. Que estrada? Juro, não me lembro. Isso, não lembro. Eu tava pê da vida. Sem raciocínio. Acho que era uma estrada que ia para o sul. Ou para o norte. Acho que eu perdi a bússola. Sabe aquela bússola que a gente tem dentro do peito?
Eu perdi a minha.

Estrada

Peguei a estrada. Estrada bacana. Pista dupla. Horizonte, céu azul, o sol brilhando forte. Pisei fundo no acelerador e nem me esquentei se tinha radar eletrônico. Dane-se. A vida é bacana, suspirei. E, durante a viagem, pensei. Na mulher que não tive. Nos filhos que eu não tive. Da vida que eu não tive. Solidão, essa companheira que nunca divide a conta. Então? Então. Então que eu estava sem rumo. Viagem longa. E o tanque estava cheio, não me preocupei. E também, qual o problema, a minha carteira está sempre cheia de dinheiro, de cartão de banco, talão de cheque. Qualquer coisa, parava num posto. E a rádio? Que rádio? A essa altura, ela havia saído do ar. Não, não coloquei nenhum cd. Preferi o silêncio. Melhor: o ronco do motor dos carros que cruzavam meu caminho. Mais nada. Ah. Eu escutava, isso era terrível, o meu pensamento. Terrível. Até que. Até. Até que aconteceu. Depois de uma curva. Por pouco, não sofri um acidente. O carro quebrou.

Novo

Não. Não sei o que aconteceu. Carro zero quilômetro, você sabe, trabalhei duro foi pra poder comprar carro zero todo ano. Ano novo, vida nova – carro novo. A felicidade não é tão simples, assim? Pois é. A felicidade deu defeito. Quebrou. E já era tarde. O sol se escondendo por detrás da verde mata. Lindo, poético, romântico. E o que fazer com o carro quebrado? Que parou de funcionar assim, de repente?
Consegui parar o carro no acostamento. E, claro, desci. E vi. Cara, não passava ninguém. Nem uma bicicleta. E durante um bom tempo: não passou sequer um carro! Tenebroso, cara. Tenebroso. Eu podia até escutar o vento. E vi, então, que, bem ao lado do acostamento: havia uma pequena estrada que me levaria a um pequeno casebre.
Pensei: eu que não uso celular. Não uso porque não me dão sossego, você sabe. Porque eu detesto gente me convidando pra ir em festa. Me convidando pra ir dançar. Me convidando pra assistir futebol na casa de amigos. Me chamando pra churrasco. Não como carne! Pô! Nem bebo! Nem refrigerante! Celular pra quê? Só amolação! Quem quiser me achar, que me ache. Não sou fantasma. Mas. E agora? Fui em direção ao casebre. Quem sabe, lá deveria ter um telefone. Pelo menos, pude observar, tinha luz, pois a luz da sala, deveria ser a sala, estava acesa. E o jeito era ligar para um reboque. E chamar, também, um táxi.

Casebre

E como era o casebre? Cara, nunca vi nada igual. Sabe casebre de filme de desenho animado. Cara, tudo pobrezinho, mas tudo arrumadinho. Paredes pintadas, telhado novo e o jardim? Lindo. Nunca vi jardim mais lindo. Dava pra ver. Além da luz da varanda, depois eu vi, estar acesa, também era lua cheia. Fazer o quê? Aproximei-me do casebre e bati palmas. Igual se faz na roça. Não é assim? Cara, ninguém atendeu. Bati palmas mais uma vez. Até gritei: ô de casa! Não é assim que eles fazem? E aí, sim, alguém abriu a porta. E eu pude ver: a cena. A cena patética.
Meu amigo. Que coisa. Assistiu Branca de Neve do Walt Disney? Lembra da bruxa? Igualzinha, cara. Impressionante. A corcunda, a cara feia, os óculos tortos, o nariz adunco, a boca seca e no rosto não havia um canto que não tivesse ruga. E o mais espantoso. Não, essa você não vai acreditar. O quê? Tá preparado? Cara. Ela sorria. Um sorriso largo. E pasme. Segurava uma maçã.


A maçã

E a velha, com cara de bruxa de Walt Disney, não disse nada. Nem um boa noite, nem um como vai. Ela segurava a maçã e pronto. Aí, sim, depois de um longo silêncio, ela estendeu, para mim, a maçã. Estava oferecendo a maçã, lógico. Eu, lógico, recusei, fazendo um gesto negativo com as mãos. Podia estar envenenada! Imagina você comer uma maçã de bruxa? Daí, eu resolvi falar. Antes que acontecesse algo pior.

— Boa noite. Meu nome é Douglas. Meu carro quebrou e estou precisando de um telefone. A senhora pode me ajudar?

Aí, cara, foi mais pavoroso. A velha não respondia. Será que ela era surda? Pensei. Aproveitei, né, e dei uma espiada rápida dentro do casebre (ela havia deixado a porta aberta). Cara, miséria total. Mas tudo limpinho, arrumadinho. Impressionante. E meus olhos conseguiram alcançar até a cozinha. E deu pra ver, cara, o velho e carcomido fogão à lenha, de onde saía uma fumacinha. Em cima dele: um caldeirão! De bruxa! Ai! Fiquei apavorado. E o pior. Concluí: era praticamente impossível ter um telefone ali. Vou religar meu celular, pode ficar tranqüilo. Mas e aí? Aí que ela, em vez de me responder, sabe o que ela disse? Espia.

— Meu filho, lembra quando você tinha cinco anos de idade? — ela falou com voz rouca de bruxa. — Eu sei que você não esqueceu. Eu sei que você não esquece. Eu sei que você nunca vai esquecer. Com cinco anos, você teve um sonho. Um sonho de olho aberto. Meu filho, o seu sonho. Você não esquece? Quem consegue esquecer um sonho? Um sonha que a gente sonha de olho aberto? Volta pro seu carro, meu filho, ele vai voltar a funcionar, viu? Não precisa de telefone, não. Volta pra sua casa, um novo futuro te espera. Chega em casa que você vai ver. Você vai ver o resultado de tudo. Meu filho, você fez a escolha.

Mas cara. Nessa hora, eu gelei. Cara, fiquei gelado. E a velha, não parou de falar, não. Continuou: Eu? Eu não conseguia falar nada, cara. Ela? Impressionante. Continuou falando:

— Ainda nesta noite, você terá uma surpresa.

Ela, então. Olhou no fundo dos meus olhos. E disse, para terminar:

— Eu não sou bruxa. Eu sou de Jesus.

Daí que eu não estava entendendo mais nada. Ela voltou-se para dentro do casebre. E fechou a porta. Eu? Fiquei de cara. Gelado. Tremia. E daí? Daí que voltei pro carro. E eu sei que você não vai acreditar. Isso mesmo que você está pensando, cara. O carro funcionou! Não pensei duas vezes. Peguei a estrada de volta pra cidade.


Dez anos é o tempo que se leva

Na viagem. No carro. Agora, com os vidros abertos. O vento limpando a minha cara. O som desligado. Alguns caminhões viajando a noite. Viagem de volta. Viagem tranqüila. A velha com cara de bruxa. Mas que não era bruxa. Me fazendo lembrar o que eu sonhei quando eu tinha cinco anos de idade. Sonho de olho aberto. Como ela descobriu? Velha doida, cara, você sabe, não sou de acreditar nessas coisas. Não acredito em duende, em fada. Cara, não acredito em Deus! Pois então. Pois ela acertou.
Você sabe, já te falei. Quando eu tinha cinco anos de idade. Meu pai, sem nenhuma explicação (é o que minha mãe diz) saiu de casa e nunca mais voltou. Minha mãe deu a louca, foi pra Europa, me deixou com minha vó que, também, era maluca, me deixava sozinho em casa pra ir jogar baralho com as amigas. Foi então que um dia, de manhã, não esqueço, olhei pra mim, no espelho e disse. Melhor: sonhei (em voz alta):

— Vou crescer. E vou construir um império.

Cara. Você sabe. Minha fortuna, hoje, ultrapassa cinco milhões de dólares. Mas sonhar não basta. Foi muito estudo, muito trabalho, muita noite perdida, muito cansaço, tudo muito. Quem tem um sonho não dança – não diz aquela canção? Pois eu consegui tudo o que eu sonhei. Tenho grana, tenho o que eu quero, na hora que quiser. Mas aquela velha. Aquela bruxa. Que não é bruxa. Não sei, cara. Ela acertou em cheio. Pois eu cheguei em casa aquela noite. Cheguei cansado. Guardei o carro na garagem. Subi pra casa. Abri a porta da sala. E entrei. E vi. Eu vi, cara.

A escolha

Pois então. Eu nunca tinha te falado isso. Pois agora vou te falar. Coisa minha. Sou um canalha, cara. Dez anos atrás, eu me lembro do dia. Melhor: me lembro daquela tarde. Tarde de sol. Tarde sonolenta. Eu só pensei: hoje, não vou ter tempo. Só vou voltar pra casa de madrugada. Se não, eu não consigo. O trabalho no começo, bem no início, era tudo uma experiência. Não tinha tempo. Não tinha. Aí, caí na besteira. Eu disse para Beatriz:

— Se manca. Sai da minha cola. Não tenho tempo.

E ela foi embora, cara.

— Me dá um tempo — eu ainda disse, enquanto ela desaparecia pela porta. Ela, novinha ainda. Linda.

E ela foi embora, cara. Foi embora. Pra sempre. E eu nunca mais a esqueci. Tentei reavê-la, mas foi inútil. Eu também não tinha tempo. Nem ela. Ela chegou a ser miss Brasil, cara. Ficou bastante famosa depois que fez novela na televisão. Pois então. Lembra da previsão da velha? Que eu teria uma surpresa naquela noite? Pois então. Eu abri a porta de casa e vi, debaixo da porta, o jornal. O porteiro sempre coloca pra mim, pois eu gosto de ler jornal à noite. Cara. Sabe o que estava na capa do jornal? É, cara. Uma foto da Beatriz.


Morta

Ela morreu, cara. Num acidente de carro. Morreu no dia anterior, cara. Notícia de jornal. Na BR 101, cara. A mulher da minha vida. O carro que ela dirigia encapotou. Encapotou assim, sem mais nem menos. Sem explicação. Ela estava sozinha no carro. Acabei de ler a notícia e fiquei gelado, cara. Comecei a tremer. E me lembrei da velha. E me lembrei do sonho. Do sonho de olho aberto. Que eu tive quando eu tinha cinco anos de idade. E me lembrei da escolha, cara. Poderia ser tudo diferente. O destino, cara. Olha só. Eu descobri, naquela noite: o destino é um pesadelo que pode ser desfeito hoje. Pede pra mim um outro suco de uva. Sem açúcar. Ah. Você vem comigo? Pra onde? Você ainda me pergunta?
Cara, vou procurar essa velha. Ela desvendou o meu mistério.


Fim

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