28 abril 2006

Conto #16 - O Tempo

Conto #16 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


O TEMPO


Mães sempre dizem: nunca aceite comida de estranhos. Todas repetem as mesmas baboseiras. Mas com 35 anos, a menos que ganhe algum dinheiro, quem vai me raptar?
_ Não está com fome?
Chega a ser um pensamento ridículo!
Preciso de dinheiro. Mas ninguém compraria meu carro imprestável. Ainda não tive coragem de simular o roubo, embora a única coisa que me leve a pagar religiosamente o seguro é a possibilidade de vir a fazê-lo. Pago o seguro e deixo a pensão alimentícia do menino esperar. Primeiro, o seguro. Segundo, o seguro também... Um dia tomo coragem. Não será difícil. Tenho tudo arquitetado. Irei a uma rua perigosa e deixarei o carro sozinho com os vidros abertos. Bastarão alguns minutos. Então...
_Ei! Tá no mundo da lua! Não está com fome? - a velha a quem equivocadamente pedi ajuda, supondo que ela tivesse um filho, um neto ou conhecesse algum homem que pudesse me ajudar, se intromete mais uma vez em meus pensamentos.
_ Está aqui há um tempão. Não sente fome?
"Estou morrendo", diria, tivesse ela algo mais a me oferecer que não essa reles maçã. Não dá nem para o começo, dona.
_Preciso mesmo é de um bom mecânico - digo, afastando a mão macilenta que segura a maça.
É claro que ela franze a testa. Velhos odeiam ser contrariados. Também esperava que ela cuspisse no chão e tremesse a boca de forma esquisita. Mas ela apenas vai para outro cômodo da casa e volta logo depois sem a fruta, colocando-se na minha frente, impedindo meu ir e vir.
_O que faz tão longe de casa? - vai logo perguntando. Velhos também são bisbilhoteiros.
"Estou apenas tentando sobreviver", minha senhora, poderia dizer, mas nada respondo. Apenas sinto muito raiva ao lembrar daquele sujeitinho em cujo encalço estou. Como pôde ser tão idiota, Douglas? Seis mil reais! Aquela conversinha mole para ganhar minha confiança. Entrego a ele seis mil reais de mercadoria, aceito um cheque sem fundos e ele some. Como vou fazer novas compras? E subornar os fiscais da alfândega? Não tenho mais a quem pedir empréstimo. Estou mesmo perdido. Mil vezes idiota!
_ Não me respondeu, ela insiste.
_Estou ocupado demais pensado em como vou sair daqui, digo a ela, saindo da sua frente e voltando a andar de um lado para outro naquela salinha apertada.
_ Quando bateu na minha porta, achei que queria ajuda.
_ Quando bati na sua porta, achei que teria ajuda.
_ Não precisa ser insolente! Sou velha, sou pobre, mas posso ajudar você.
_ Não diga! Entende de carros? - parei na sua frente, com as mãos na cintura.
_ Se não está gostando, por que não vai embora?, ela solta um risinho de escárnio. Sabe que não posso ir.
_ Porque está chovendo!, respondi e sentei numa poltrona velha, perto da janela, olhando para a chuva lá fora. Está forte e com isso não consigo ver o carro, nem a estrada, mas vejo o chão enlameado, as árvores balançando com o vento, a névoa. De vez em quando, um trovão, um relâmpago.
"Ninguém poderia ser gentil numa situação como essa, minha senhora", não digo a ela. Ah! Cheio de dívidas e sofro um golpe. Me perco no meio do nada e meu carro pára.
_ Vai passar em dez minutos.
_ O quê?
_ A chuva.
Metereologista. Era só o que faltava.
_ O que você faz?
Odeio ser interrogado. Lembra quando fui preso por causa da pensão do menino. Três dias no xadrez. Um pardieiro imundo.
_ Sou empresário, disse sem olhar para ela, contemplando minhas mãos, a linha branca no dedo da aliança.
_ De quê?
Cinco anos casados e ela vai embora com outro. Depois, manda me prender.
_ A senhora não vai querer saber...
_ Ah, vou sim!
Não me importo de dizer a ela. Vivendo num casebre, no meio do mato, nem vai entender. Tanto faz. Não roubo, não mato.
_ Do ramo de importação. Vinho, dvds, celulares, relógios e outras coisinhas mais. Coisa de primeira. Do Paraguai, mas de primeira.
_ Humm...
Ela murmura como se entendesse. Mas nem deve saber o que é Paraguai. Procuro desdém no seu olhar, mas nada encontro. Seu olhar é frio e nada revela sobre ela.
_ Não é uma grande empresa. Não é um negócio grande, mas dá pra viver.
_ Casado?
_ A senhora não fez perguntas demais para uma tarde apenas? Fez perguntas que preenchem uma vida inteira. Mas vou lhe dizer uma coisa: não sou casado! Nunca mais serei! E não tenho filhos. Se algum dia eu tive, quando eles foram embora, deixou de ser, entendeu?
Penso que a venci. Que agora se calará. No entanto, mal fecho a minha boca, ela me bombardeia com uma nova pergunta.
_ E como veio parar aqui?
Penso em ir embora, em sair na chuva forte e me danar.
_ Droga! Me perdi! As pessoas se perdem, sabia? Nunca se perdeu? Não quer dizer que eu seja burro ou incompetente. A droga do mapa voou pela janela do carro quando veio um vento mais forte.
Claro! O azar de uns é a sorte de outros. Não que achasse que encontraria o pilantra no endereço posto no verso do cheque, mas seria sempre um ponto de partida.
_ Você acerta quando diz que o azar de uns é a sorte de outros.
_ Não disse isso -observo.
­_ Mas pensou - ela responde.
Velhos acham que podem ler pensamentos. Só porque viveram um pouco mais que os outros.
_ Escuta, dona! A senhora não tem outra coisa pra comer além de maçã?
_ Não...
Droga! Nem gosto de maça...
_ Nem um biscoito? Um pãozinho?
_ Não...
_ Tá! Então... Eu aceito a maça.
Ela deu seu risinho sarcástico outra vez, como se já esperasse aquilo, e disse que a buscaria na cozinha.


A chuva estava passando e ficar ali de nada me adiantaria. Ela não tinha nem uma comida que prestasse, nem uma ferramenta pra me emprestar. Agora, mais do que nunca, teria que me livrar daquele carro. Se conseguisse sair dali, a primeira coisa que faria era abandonar o carro numa rua perigosa, com os vidros abertos, a chave no contato...
_ Olha, dona, obrigada por tudo. Vou voltar ao carro. Vou levar a maça para comer no caminho.
_ Faça como quiser. Boa sorte. A propósito...
_ O quê?
_ É ele quem vai encontrar você.
Não lhe dou ouvidos que um velha biruta não merece crédito. Ele jamais me encontraria porque é isso que ele menos quer. Já sumiu com meu dinheiro e agora quer aproveitar. Seguro a maça na boca e me ajoelho para levantar a barra de cada calça. Uma depois da outra. O caminho deve estar um lamaçal terrível e não quero aparecer na estrada como um maltrapilho. Tenho que conseguir carona até a próxima cidade e voltar para buscar o carro.
_ Não me disse seu nome.
_ Douglas.
_ Tome cuidado, Douglas.
_ Cuidado! Com o quê? Eu me garanto, dona.
_ Com o tempo. Aqui, às vezes, passa rápido demais.
_ Quero mais que o tempo se f..., digo e vou embora, feliz por me livrar de suas perguntas incômodas.
A chuva passa, mas como ainda resta névoa, não consigo ver a estrada. Tentar encontrar meus passos na lama seria tarefa impossível. Vou para a frente porque lembro que andei reto, muito pouco, até chegar a casinha que avistei da estrada. Sinto uma tontura. Sei que é de fome e lamento não ter aceito logo o oferecimento da dona. Levo a maça à boca e quando a mastigo...tão doce, tão macia... lembro da minha mãe me acordando, do meu pai preparando brinquedos, do cheiro de café fresco. Lembro do meu filho nascendo. Sinto uma súbita felicidade, um súbito esquecimento.


Levanto do chão sentindo a cabeça pesada. Acho que dormi. Isso! Acho que desabei de cansaço e fraqueza e dormi. Há sol e o chão não está mais molhado. Nem parece que choveu tanto há tão pouco tempo!
A vegetação também parece diferente. Mais alta, viçosa. Tenho quase certeza que era baixa, com uma cor mais amarela. Mas posso não ter visto direito. Ahh! Depois, quem se preocupa com plantas?
Minha roupa está seca. Mas em farrapos, amarelada, quase se desintegrando. Com um cheiro ruim, nauseante. Não entendo o porquê, mas tanto faz.
De longe, vejo uma formação estranha. Quanto mais me aproximo, mais reconheço os contornos de um carro. Meu carro! Alguém o havia retirado do meio da estrada e o encostado ao lado. Só ao chegar mais perto, vi que estava todo enferrujado. Meu Deus, Irreconhecível! Não passava de uma carcaça! Havia grama sobre e dentro dele! Havia insetos correndo pelo que foram suas poltronas! O mapa que perdera.... o mapa estava no carro, ilegível, as letras borradas, o papel escurecido! Procurei minha pasta. Sumira!
Digo a mim que não pode ser! Que se trata de um pesadelo.
Virei os olhos para trás, buscando o casebre, talvez a velha pudesse me explicar. Mas em seu lugar, só ruínas: metade do telhado no chão, não havia paredes. O que acontecera? Quanto tempo se passara?
Sentei-me no chão, inconsolável, quando percebi a lenta aproximação de um rapaz. Não devia ter mais que vinte anos. Talvez fosse ele o responsável por aquela perversa brincadeira. De um pulo, me escondi atrás da árvore mais próxima e o observei. Era alto, moreno, caminhava de um jeito estranhamente familiar. Vi quando ele escorregou a mão na carcaça que o carro se tornara. O que podia pretender? Roubar o que sobrara e vender a um ferro velho? Abriu com dificuldade o que restara da porta, consumida pelo ferrugem. Fechou os olhos. Não parecia um ladrão comum e isso me deu raiva. Ainda que tivesse se transformado num monte de lata enferrujada, aquele carro ainda me pertencia.
_ Perdeu algo aí, rapaz? - fui logo saindo detrás da árvore e perguntando a ele.
Ele tomou um grande susto. De certo, jamais imaginara que o dono do carro aparecesse justamente naquele momento.
_ Sim, perdi..
Petulante o rapaz, pensei comigo.
_ O quê?, perguntei.
Ele não respondeu. Mas me olhava tão profundamente que quase me desconcertei.
_ O quê? Responda!, grito.
_ Meu pai. Há tempos que o procuro. Há dez anos que sumiu. Isto é o que sobrou do carro dele.

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