27 abril 2006

Conto #17 - Resgatando o Amanhã

Conto #17 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (
GRTV-Yahoo)


Resgatando o Amanhã


A noite chegou trazendo com ela uma forte tempestade. Douglas voltava de uma reunião de negócios em uma localidade próxima e não imaginou que terminaria tão tarde. Havia pouco movimento na estrada, e isso era ótimo, porque mal dava para enxergar qualquer coisa no caminho.
Estava tenso, cansado e ansioso para chegar logo em casa. Sempre trabalhou muito, mas nesses últimos meses, ele havia se superado. Era um empresário bem sucedido, possuía sua própria empresa, e acabara de ganhar um novo e importante cliente. Havia semanas que não dormia direito, comia sempre rapidamente, abrira mão de sua rara vida social; mas o valor do contrato assinado compensava todo e qualquer sacrifício.
Após uma acentuada curva, Douglas percebeu que o motor do carro não estava com o rendimento normal. Ficou atento, e lentamente o carro foi diminuindo a velocidade. Prevendo que não conseguiria continuar, ele foi se aproximando do acostamento, e foi o tempo suficiente para o motor parar de funcionar.
Levou alguns minutos para que um atônito Douglas acreditasse no que estava acontecendo. Já era quase madrugada, a estrada estava deserta e ele não conseguia enxergar o que havia à sua volta.
Ao pegar o celular na tentativa de pedir ajuda constatou que ele estava sem sinal e a ligação não completava. “Isso já era demais” – pensou enquanto buscava alguma outra alternativa que não fosse passar a noite naquele lugar.
Após uma hora de pensamentos infrutíferos, resolveu sair do carro e procurar alguma casa onde pudesse encontrar ajuda. Não seria uma missão nada agradável, mas era o melhor que podia fazer nesse momento.
Saiu, trancou o carro e começou a caminhar com dificuldade contra o vento intenso. A chuva grossa castigava seu corpo, e vez ou outra, com os olhos semicerrados, levantava um pouco a cabeça à procura de algum sinal de vida, alguma luz.
Havia caminhado uns 500m, quando sentiu um forte cheiro de fumaça. Olhou ao redor e teve dificuldades em focar uma pequena e tímida luz que vinha de dentro da mata que beirava a estrada. Devia estar a uma distância de 50m, e concluiu que embora não enxergasse quase nada, não teria muita dificuldade em chegar até lá.
Ao se aproximar sua decepção e surpresa foram imediatas. Não era uma casa, mas um casebre extremamente pobre, onde com certeza não teria sequer um telefone. Parada em pé na porta estava uma senhora muito idosa, que não devia ter mais de 1,50m de altura, já curvada pela idade avançada, com um lenço cobrindo os cabelos acinzentados, um xale protegendo-lhe os ombros e uma maçã na mão. Parecia que ela o estava esperando. Douglas não estava gostando nada da situação, mas estava encharcado, sujo e ali ao menos teria um abrigo, água e talvez até algo mais que uma maçã para comer. Ao aceno de cabeça da mulher, Douglas cruzou a porta de entrada.
Apesar de muito simples, o interior do casebre estava agradável. Só havia dois cômodos e em um canto da sala estava um fogão à lenha, onde o fogo aquecia uma jarra de leite, um pão e também o ambiente. Mulher de poucas palavras, a dona da casa entregou a Douglas uma toalha seca e limpa, a maçã, e caminhou até o fogão para pegar a bebida e o pão. Ao voltar, sentou-se diante dele em uma cadeira colocada junto à rústica mesa de madeira escura e envelhecida. Pela primeira vez desde que se encontraram a velha senhora olhou-o fixamente nos olhos, e com uma voz fraca e rouca falou:
— Ela vai voltar e lhe redesenhar o curso! – dizendo isso, abaixou a cabeça e bebeu um gole de leite.
Douglas, mesmo vencido pelo cansaço, ainda tentou interpretar aquelas palavras, mas concluiu que a idade já devia estar afetando o raciocínio daquela pobre mulher. Continuou calado comendo sua maçã.
Alguns minutos depois, ela voltou a falar:
— A aceitação o trará de volta à verdade! – e repetiu o gesto anterior. Logo em seguida:
— A luta será travada e o confronto inevitável!
Levantou-se dessa vez, e caminhou para o outro cômodo sem olhar para trás, deixando Douglas completamente aturdido.
As velas que estavam em cima da mesa se apagaram, e com dores por todo o corpo, Douglas deitou-se no tosco banco de madeira e adormeceu apenas com a claridade do fogo que ainda crepitava no velho fogão.
Por entre as frestas da madeira que sustentava a casa, a noite foi se despedindo dando lugar a tímidos e débeis raios de sol.
Douglas acordou completamente atordoado, e assustado levantou-se em um único e arrebatado movimento.
Olhou em volta, foi até o quarto, mas encontrou-o vazio. O cheiro de lenha queimada ainda estava no ar, mas não havia sequer uma brasa ainda acesa. Abriu a porta e uma revoada de pequenos pássaros alegres deu um rasante bem próximo a ele. Não teve mais dúvidas: estava completamente sozinho. Entrou novamente deixando a porta aberta atrás de si, depositou uma razoável quantia de dinheiro embaixo da jarra de leite e foi embora apressado.
Logo avistou a estrada, que lhe parecia bem mais próxima ao casebre que na noite anterior. Notou também que estava bastante movimentada, e fazendo um sinal ao primeiro carro que encontrou, conseguiu carona até a cidade. O carro era meio antigo embora bem conservado, e ele estava torcendo para que não apresentasse nenhum problema. O motorista, carrancudo e mal-humorado não lhe deu espaço para nenhuma aproximação; Douglas então prosseguiu absorto até chegar à cidade. Agradeceu a carona enquanto pensava nas inúmeras providências que teria que tomar, desde resgatar seu carro, até recuperar o trabalho atrasado e o tempo perdido. Já era quase hora do almoço; tinha que se apressar. Ao virar-se, Douglas estancou! Assombrado, ficou observando a portaria do enorme prédio à sua frente. Sem dúvida alguma era o endereço de sua empresa, mas a construção estava exatamente como era dez anos antes, quando ele alugou a primeira sala e deu os primeiros passos em seu novo e arrojado empreendimento. Um ano depois, os proprietários dos escritórios se uniram e fizeram uma grande reforma, modernizando e sofisticando ainda mais o edifício. E o que estava diante dele era exatamente o que existia antes da reforma. Observou os pedestres e todos usavam roupas que estavam na moda há dez anos atrás. Só então se deu conta de que os carros também eram dessa época. Ficou alguns minutos parado sem conseguir assimilar aquelas informações, até sentir braços delicados envolvendo-lhe a cintura pelas costas. Não acreditou em seus próprios olhos. Era Virginia, sua namorada dos tempos de faculdade, com quem fizera planos para uma vida inteira. Mas dois anos após a formatura ela o deixou; não suportou a ambição desmedida de Douglas, sempre pensando em seus negócios, em conseguir muito dinheiro, em alcançar um elevado status econômico e social, mesmo em detrimento de sua relação com ela. A princípio ele tentou evitar a separação, mas vislumbrando o belo futuro que esperava o jovem empresário em franca ascensão, não se empenhou muito nessa batalha.
Virgínia falava sem parar, os olhos brilhando, enquanto mostrava para ele as fotos do chalé onde passariam o final de semana. Sua exagerada empolgação se justificava, pois sabia que nessa etapa de sua vida, teria poucas oportunidades de lazer com o namorado.
Finalmente Douglas percebeu o que estava acontecendo: de alguma forma que ele não conseguia entender, foram “roubados” os últimos dez anos de sua vida. Percebeu que Virgínia o via dez anos mais jovem e, incrédulo, achou melhor não dizer nada. Não sabia o que estava acontecendo e poderia ser avaliado como louco ou desequilibrado. Estava apavorado com a situação, mas Virgínia pareceu não notar.
Douglas então decidiu deixar as coisas acontecerem até descobrir o que o havia levado àquela situação insólita. Sempre soube manter o sangue frio, e não iria falhar agora.
O final de semana chegou e o casal viajou para o chalé. À espera deles estava um pequeno grupo de amigos, que fizeram uma festa com muita alegria para recepcioná-los. Douglas reviu seus melhores amigos de faculdade, e os abraçou com uma saudade passada despercebida nos últimos dez anos.
Durante os dias em que estiveram juntos, Douglas e Virgínia falavam de seus planos para o futuro, se divertiam com os amigos, e Douglas se deu conta do quanto era querido e admirado por eles. Quando todos se recolhiam já tarde da noite e Douglas tomava Virgínia em seus braços, pensava no grande amor que sentira por ela, e se questionava sobre como a deixara ir embora.
Quando voltaram para a cidade, Douglas continuou sua rotina como havia feito no passado. Iniciou seu trabalho, e todos os dias, a namorada vinha buscá-lo para almoçarem juntos. Às vezes ele estava sozinho em seu escritório e ria ao pensar no seu desespero quando surgia algum problema no trabalho, e no sucesso que sempre alcançava depois. Mas também era tomado por certa melancolia quando pensava no que estava vivendo. Sabia que nada podia fazer até que recebesse alguma indicação de como sair daquela situação. Por outro lado estava até gostando de rever os amigos e a namorada, a vida feliz e leve que tivera um dia.
As semanas foram passando dentro da normalidade possível. Douglas estava feliz como já não se lembrava ter sido um dia.
Uma noite, estava sozinho em casa, quando começou a pensar no que havia sido feito de sua vida. No quanto foi mesquinho e egoísta ao escolher seu caminho. Não pensou no sofrimento que causou a Virgínia, não hesitou em abandonar os verdadeiros amigos, apenas porque eles, algumas vezes, não concordavam com ele. Supervalorizou o status, o dinheiro e a carreira, e perdeu a chance de ter uma vida simples e confortável, cercado pelo amor de Virgínia e o carinho dos parentes e amigos. Pensou em sua vida atual e teve que admitir que não tinha pessoas ao seu redor em quem realmente pudesse confiar. As poucas relações que mantinha eram sempre motivadas por interesses financeiros. Depois de Virgínia, nunca mais amou outra mulher.
Sentiu uma grande opressão em seu peito e revoltou-se contra sua incapacidade de avaliar o real valor de cada coisa na sua vida. E agora, nada poderia fazer. Estava passando por essa situação insana, mas com certeza em algum momento, de alguma forma, tudo teria que voltar ao normal. Havia anos que não tinha notícias de ninguém e nem imaginava como encontraria as pessoas queridas. E mesmo que as encontrasse, o tempo e as distâncias mudam tudo, e ele jamais conseguiria reviver os momentos felizes que estava vivendo agora. E admitiu que ele mesmo havia sabotado sua felicidade, que ele era o único culpado pelas escolhas erradas, que ele mesmo havia roubado os melhores anos de sua vida! E o grande empresário, o senhor “sangue-frio” chorou como um menino e adormeceu.
Acordou sentindo um gosto horrível na boca, uma imensa dor no pescoço, o sol forte impedindo que abrisse direito os olhos e estava banhado de suor. Ao se mexer percebeu que estava dentro do seu carro, no mesmo lugar onde havia parado. Saiu do carro e viu a estrada movimentada, sem que ninguém desse importância ao fato dele estar ali em pé. Até que alguém fazendo sinal avisando que ia encostar. Cambaleante Douglas se apoiou e esperou ajuda. Ouviu então aquela voz doce e familiar se aproximando e dizendo bem-humorada:
— Eu tinha certeza de um dia nos reencontraríamos, mas nunca imaginei vê-lo assim... Nossa! Você está horrível! – disse Virgínia com um sorriso e abraçando Douglas fortemente.
Ele retribuiu o abraço e seus olhos ficaram marejados de lágrimas. Ele olhou para o céu e lembrou-se de algo que lera uma vez e que dizia que o passado não pode ser mudado, mas temos o futuro inteiro para reconstruir a vida.
Virgínia se ofereceu para levá-lo à cidade. Caminharam abraçados em direção ao carro dela.
— E então Douglas, ainda obcecado pelo trabalho?
— Sabe que não? Inclusive eu acabei de dispensar um cliente e estou pensando em tirar uns dias de folga... Você tem algo planejado para os próximos dias?
Sorriram e o carro seguiu tranqüilo o novo caminho.

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