Conto #18 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)
Títere do Tempo
Entrei em casa e tudo parecia alterado. Estava confuso. Aonde foi parar minha sala? Meus objetos? Olhei uma cadeira de balanço. Quando compraram aquilo? Dora nunca gostou de cadeira de balanço.
- Coisa de velho. – dizia ela.
Olhei a televisão. Plasma? Como assim? Uma televisão de plasma? Ganhamos na megasena e não me informaram? Dora saiu da cozinha e me olhou com um sorriso tranqüilo.
- Chegou mais cedo, amor.
Deu-me um beijo na testa, me pareceu tão envelhecida. O que poderia estar acontecendo?
- Cuidado com o que pedes, a vida pode lhe dar em dobro. – A velha tinha me advertido.
Foi quando uma moça entrou na sala.
- Oi, pai.
Pai? Como assim, pai? Natália tinha apenas sete anos e era a única filha que eu lembrava ter. Como aquela moça bonita podia me chamar de pai?
- Tá passando bem, pai?
Sentei, tudo parecia rodar em minha cabeça. Dora me apoiou para que não caísse.
- Natália, pega um copo d´água para seu pai.
A moça saiu. Não era possível. O que poderia estar acontecendo? Encostei-me no sofá e olhei um jornal largado na mesinha. A data dizia: 13 de março de 2016.
- Dois mil e dezesseis?! – exclamei assustado.
- Que tem homem? – perguntou Dora.
- Não é possível.
Natália voltou com a água. Levantei ainda zonzo.
- Senta, pai.
Eu tinha que voltar àquele local. Aquela velha disse que meus desejos estavam sendo atendidos. Disse que eu teria paz. Mas, aquele era o pior dos meus pesadelos.
Sai e, sem olhar para ninguém, entrei novamente no carro. Não estava mais chovendo. Suspirei e liguei o carro. Conseguiria encontrar aquele casebre novamente? Fui me dirigindo à estrada. Estava diferente agora que não mais chovia. E pensar que horas antes eu estava ali, com um carro enguiçado, nervoso. Eu achava que tinha problemas. Tudo que precisava era encontrar a boneca que Natália pedira de Natal. Que tolo. Reclamava tanto da pequena e agora não reconhecia aquela moça. A velha tinha me dito que não deveria odiar um problema que ele se tornava mais forte.
Agora me perguntava de onde teria saído aquela mulher? Nervoso, no meio da chuva, achei que tinha caído do céu. Lembro perfeitamente.
- Quer uma maçã, senhor?
- Quero um mecânico.
- Não existem mecânicos por aqui.
- Que lugar é esse?
- O começo do fim do mundo.
O começo do fim do mundo. Sim, era o começo do fim do mundo que eu conhecia. Pra que fui aceitar aquela maçã? Por que segui aquela mulher? Uma criatura tão enigmática não poderia mesmo me levar para um caminho que prestasse. Nervoso, com frio, com medo, não raciocinei. Segui aquela mulher como um cego segue seu cão-guia. Ela me levou para seu casebre. Ofereceu-me um chá quente. A maçã ainda estava pela metade, mas o frio fez com que aceitasse aquele chá reconfortante. Tomei alguns goles, enquanto ela se olhava. Percebi que não tocara no chá.
- Você tem medo em seu coração.
- Medo? Bobagem.
- O que fazia no meio dessa estrada?
- Estava voltando de São Paulo. Minha filha pediu uma boneca especial no Natal.
- Filhos são uma benção.
- Filhos são um tormento.
- Não diga o que não pode sustentar.
Realmente, não poderia sustentar tal baboseira. Natália havia sido a felicidade da casa. Lembro de quando nasceu. Tudo pareceu criar nova cor. Meu mundo estava definitivamente diferente. Olhei para aquela velha enigmática e pedi para fazer uma ligação.
- Não tenho telefone.
- E como pretende me ajudar?
- Lhe dando tempo.
- Tempo? Com assim tempo?
- Tempo para pensar.
A velha pegou minha xícara e olhou seu fundo. Fez uma cara igual à de minha mãe toda vez que via meu boletim escolar na infância. Comecei a ficar inquieto. Já era tarde e aquela mulher não poderia me ajudar a chegar em casa antes do jantar. Mas, aquela estrada vazia também não me levaria.
- O tempo cura todos os seus anseios.
Anseios? Do que ela estava falando? Como poderia desconfiar que, de dentro de meu peito, pulsavam os mais loucos anseios de uma juventude frustrada. Tornei-me um empresário de sucesso, tal qual meu pai. Casei com a mulher que ele escolhera, tive uma filha que era o seu orgulho. Mas, os meus anseios eu jamais pude sentir, quanto mais realizar. Agora Natália era uma criança que dependia de mim. Não poderia voltar atrás. Tinha que esperar ela crescer. Mas, como isso estava distante a minha vida era um redemoinho de anseios não realizados. Levantei e olhei pela janela a chuva que ia afinando.
- Já vai acabar. Poderá partir.
- Com um carro quebrado?
- Seu carro já foi consertado.
E agora, o que ela pretendia? Como poderia ter consertado um carro? Ela apontou para a porta. Saí incrédulo. Andei até o carro e, como um milagre, ele funcionou. Estava tão entretido tentando entender o milagre do carro que não percebi que a estrada havia mudado. Ao chegar em casa, percebi o que deveria ter percebido a duas horas. A velha tinha razão, ela tinha me dado tempo. Ou melhor, ela tinha tirado dez anos de vida. Treze de março de 2016. Véspera de minha filha completar dezoito anos. O que significava aquilo, meu Deus. Eu não poderia prever.
Cheguei no mesmo local em que o carro havia parado. Podia reconhecer a árvore frondosa no canto esquerdo. Saltei e comecei a andar. Mas, não havia sinal do tal casebre que me acolhera horas antes. Estaria enlouquecendo? Andei mais um pouco e nada. Nunca existira. Não era possível.
Entrei novamente no carro e fui andando sem rumo. Avistei um posto. Parei. Olhei a data em um calendário. Estava lá: 2016. Eu estava definitivamente no futuro. Sem a menor idéia de como retornar.
- Alguma coisa, patrão? – Perguntou-me um senhor sentado em um banquinho.
Mesmo não acreditando no que estava falando ouvi minha própria voz respondendo àquele homem.
- Procuro um casebre, onde mora uma senhora, aqui por perto.
- Casebre? – o homem coçou a barba – Alice.
Uma mulher saiu de dentro da loja, meus olhos cruzaram com o dela e não pude deixar de ficar ainda mais confuso. Era ela. A velha, só que parecia dez anos mais moça.
- A senhora?! – consegui exclamar.
- O senhor me conhece?
- A senhora me ajudou, algumas horas atrás. Lembra? Meu carro.
O homem levantou de seu banquinho e ficou na frente da mulher. Eu estava realmente perdendo o equilíbrio.
- O senhor tá variando?
- Calma, Antônio.
- O senhor não entende.
- Olha, moço. O senhor pode ter dinheiro, mas não tira uma com minha cara, não.
O homem se aproximou de mim.
- Fora daqui.
- Espera. Ela tem que devolver o que me roubou. – gritei incrédulo.
- Eu não roubei nada.
O homem me empurrou. Cai com o traseiro no chão, olhando atônito os dois entrarem na loja.
- Eu preciso entender. É minha vida.
Coloquei as mãos na cabeça e chorei. Nada mais me restava. Minha vida parecia correr pelas mãos. Ou melhor, pelas minhas palavras. Nada me tirava da cabeça aquilo que tinha dito a velha. “Cuidado com o que pedes, a vida pode lhe dar em dobro”. Eu queria desesperadamente que minha filha crescesse e eu pudesse recomeçar. Aconteceu. Em um piscar de olhos, dez anos haviam-me sidos tirados. Dez anos bem aproveitados por aquela velha. Como? Eu jamais poderia compreender. O que eu sabia era que agora que tinha acontecido eu não queria mais. Queria a minha menina de volta. Queria poder lhe comprar todas as bonecas do mundo. Queria nunca ter parado naquela estrada.
Levantei com as costas doendo. Meus olhos estavam cheios de lágrimas. Entrei no meu carro e ainda pude ver aquela mulher misteriosa me olhando pela janela. Suspirei, resignado. Bati a cabeça várias vezes no volante. Algo estava fora do lugar. De repente, alguém bateu na janela do meu carro. Era ela. A velha. Abri a janela com um fio de esperança. Ela sorriu.
- O tempo cura todos os seus anseios – disse ela.
- É você, eu sabia. O que fez comigo?!
- Nada.
- Você fez. Roubou minha vida.
- A gente não perde o que não tem.
- Louca.
A mulher deu a volta e foi se afastando. Saí do carro desesperado. Peguei a mulher pelo braço. Ela tinha que me devolver os anos que não vivi.
- Que bruxaria é essa?
- Justiça.
- Conversa.
- Você queria que o tempo passasse rápido. Eu só queria voltar no tempo. Uma troca justa. Não acha?
Olhei incrédulo para aquela mulher. Soltei seu braço e chorei compulsivamente. Ela voltou para dentro da loja. Eu não tinha o que responder. Ela tinha razão. Eu pedi aquilo. Com uma dor no peito, dirigi meu carro para estrada e novamente para minha casa. Esperava com todo ardor que, ao chegar, tudo não passasse de um terrível pesadelo.
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