29 abril 2006

Conto #13 - Hibernação

Conto #13 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


Hibernação


Um dia, eu acordei!O mundo estava totalmente diferente do que era antes e minha cidade antes arborizada e cheia de pequenos oásis de verde se transformara numa enorme floresta de concreto e vidro. Atordoado buscava entender o que acontecera e andava sem saber para onde ir.Nas mãos, o jornal apanhado numa lata de lixo e para qual ainda não conseguia olhar sem ter vontade de gritar e chorar desesperadamente: 25 de abril de 2016!Mas não podia ser!Eu me recusava a acreditar que dez anos se passaram e eu não os vivi;
Na loucura que se seguiu ao meu despertar naquela floresta escura e fria, o único ponto verde que restara na cidade, tentava ordenar minhas idéias e encontrar alguma explicação lógica para o que acontecera, mas não havia lógica alguma...Havia o vazio de não existir e a sensação sufocante de alguém que perdeu alguma coisa e essa “coisa” era eu mesmo! De alguma forma, através de algum tipo maligno de mágica ou encantamento eu fora roubado em dez anos da minha vida;
Gritei e atirei longe os jornais; alguns transeuntes me olharam com raiva e desconfiança.
Minha figura despertava suspeita das pessoas, que passavam aquilo me incomodava muito!
Sujo e maltrapilho, eu era uma pálida imagem do vaidoso empresário de porte atlético (conseguido as custas de muita ginástica), ternos italianos, e roupas de griffe, que chamava atenção onde passava, despertando inveja nos homens e desejo nas mulheres.
Senti fome e logo me lembrei de que a última vez que comera algo (ou pelo menos que lembrava ter comido) fora àquela maldita maçã e aquele maldito chá; Chá coisa nenhuma!Poção maligna daquela bruxa perversa; Que loucura!Bruxa? Mas eu não acreditava em bruxas, nunca acreditei em nada que não fosse palpável, comprável, passível de ser adquirido pelo poder do dinheiro ou modificado pela ação do talento e da inteligência.Meu talento, minha inteligência!
De que me serviram o talento e a inteligência naquele dia, quando aquele maldito carro esporte, novinho, quebrou no meio do nada e aquela velha de olhar estranho apareceu?
Minha curiosidade idiota em saber o futuro e o olhar daquela velha me enfeitiçaram e por isso entrei naquela cabana infecta no meio do nada! Se eu soubesse! Mas “se” é o advérbio dos fracassados!Odiava usá-lo!
Pra que ela foi dizer que eu iria ganhar uma fortuna?Aquela foi à isca!
Ela olhou o carro e percebeu que eu gostava de dinheiro (quem não gosta?) e usou isso para me atrair para uma armadilha!Mas pra que meu Deus?Como isso foi acontecer?
Você não tinha o direito de fazer isso comigo, Deus!Comecei a chorar feito criança!
Douglas Camargo, empresário bem sucedido, um trator nos negócios, passando por cima de tudo e de todos para conseguir o que queria não era homem de lagrimas...Mas eis que sentado num canto de muro infecto, o odor de urina queimando as narinas me peguei chorando e implorando a Deus que me ajudasse! Pensei em minha mulher, minhas filhas, meu trabalho!Como eu conseguiria encontrá-los?E será que eles me aceitariam de volta?Claro que sim!Eu havia erguido um império e é claro que ele não acabou em dez anos.Aquele pensamento meu deu forças para levantar e continuar caminhando; Mesmo com repugnância comi um sanduíche pela metade jogado no lixo e cujo odor parecia bom.Caminhei bastante, perguntando aqui e ali pela rua onde eu morava; descobri que a cidade estava diferente, mas as pessoas eram as mesmas, frias, desconfiadas e egoístas, incapazes de parar alguns minutos para dar uma informação, apressadas e fúteis, muitos sequer olhavam para mim e se afastavam com ar de desdém.Parei diante de uma vitrine, meu aspecto estava se possível ainda mais assustador; rosto sujo e cansado e olhos azuis, desbotados e tristes, que eram uma caricatura de mim mesmo, difícil de olhar.
Curiosamente não havia rugas e meu rosto não envelhecera; minha hibernação preservou a pele da ação do tempo;
Finalmente alguém me indicou a direção da minha antiga rua; ficava a quatro quadras dali;
Apressei o passo sentindo o coração na boca; será que minha mulher me aceitaria de volta, acreditaria em mim? Apesar de casados há 10 anos quando eu desapareci, nosso casamento já era uma farsa há muito tempo; apenas a conveniência nos unia; Verônica era a mulher ideal para um homem de negócios: bonita, elegante, boa de exibir em festas e compromissos de trabalho; não nos amávamos mais, éramos apenas inimigos cordiais e a ela bastava um crédito ilimitado e uma boa dose de notícias em colunas sociais para fazê-la feliz, coisas que eu podia fornecer facilmente.
Será que ela casou de novo?Certamente que sim!Com alguém mais rico e mais importante do que eu, provavelmente.Acho que pelo menos minhas filhas lembrariam de mim, apesar de que, eu reconheço, nunca fui muito ligado a elas, principalmente quando eram pequenas; detestava as exigências e birras infantis!Cedo descobri que presentes e mimos faziam com que elas se acalmassem e assim elas cresceram acreditando que podiam ter tudo; quando raramente eu deixava de fazer seus gostos, as duas emburravam durante dias, até que eu desistia e cedia, era mais fácil.Não existia amor de nenhuma das partes, embora elas amassem a mãe, de quem pareciam terem sido xerocadas, cópias idênticas e aperfeiçoadas de uma máquina gastar.Sorri diante daquela imagem!Foi meu primeiro sorriso em dez anos, pensei!
Quase sem querer cheguei a minha rua!Reconheci apenas alguns pontos, mas sabia que o meu prédio ainda deveria estar de pé, afinal de contas era um prédio novo quando eu fui morar nele;
Eu tremia de frio, ou seria de medo? O porteiro me olhou desconfiado; Empostei a voz e procurei passar alguma força à minha pergunta, mas as palavras não saíram; o homem me olhava impaciente do alto da guarita, que sofrera poucas modificações:
-Meu nome é Douglas Camargo, gostaria de falar com Verônica Camargo, falei!
O porteiro respondeu que não havia nenhuma Verônica Camargo e fechou o vidro na minha cara; insisti: pode ser outro sobrenome!
-Tem uma Verônica Lopes que mora na cobertura;
Meu coração falhou uma batida: eu morava na cobertura...Não pode ser coincidência;
-Chama ela, por favor!Diz que é o Douglas que está aqui; Aguardei minutos que pareciam horas!
-Ela diz que não conhece nenhum Douglas -disse o porteiro.
Por favor-insisti-diz a ela que é Douglas Camargo e que eu preciso falar com ela;
Ele pos a cabeça pro lado de fora e apontou para a câmera:
- Olha para câmera!
Limpei o rosto e afastei o cabelo da testa...Aguardei, lutando para não chorar.
-Ela vai descer, pediu pro senhor esperar aqui fora.
Encostei na parede ,o ar me faltando, o coração batendo tão forte que parecia que ia sair pela boca! Eu chorava!A janela da portaria se abriu e uma mulher colocou a cabeça para fora e me encarou; por alguns instantes tudo voltou ao passado, muito embora as rugas ao redor dos olhos dela e os vincos na testa, apesar de discretos (plástica com certeza) não deixavam dúvidas da passagem dos anos para Verônica!Pois era ela que me olhava com incredulidade e horror!Minha mulher!
-Douglas?Não pode ser!
- Pode sim - respondi cansado-sou eu mesmo!Me deixa entrar,precisamos conversar!
Ela recuou e falou qualquer coisa com o porteiro e o portão se abriu;
Ela não havia engordado nada, ainda estava em forma apesar de ter hoje quase cinqüenta anos.
Tentei explicar o que acontecera, falei da pane do carro, da cabana na mata onde entrei para buscar ajuda e da velha que fazia previsões!Finalmente falei da maçã, certamente embebida em alguma misteriosa substância mágica e do imediato mergulho na escuridão do qual só retornei dez anos depois! Verônica sorriu irônica!Seu olhar era de escárnio e ela riu debochada (a mesma risada que eu sempre detestei, cheia de empáfia e superioridade); Chamou-me de louco, cínico, mentiroso, disse que não acreditaria nunca naquela asneira toda, de poção mágica, maçã, anos roubados.
Jogou na minha cara as dificuldades passadas (a maioria delas devido ao fato de meu corpo nunca ter sido encontrado o que ,segundo ela,dificultou o inventário e coisas do gênero)!Ela não mudara nada!Fria e egoísta!Perguntei das minhas filhas: estavam bem e felizes, casadas com homens bem sucedidos e as duas com dois filhos cada;
Chorei diante da notícia: eu era avô e pedi para vê-las!Porém uma está morando na Alemanha e a outra na Bélgica; Verônica casou de novo (como imaginei,com uma rico empresário).
Implorei para subir, tomar um banho, roupas novas; ela disse que não podia fazer nada, que o marido não ia gostar de me ver ali; que eu passasse bem e fosse embora novamente, desta vez pra nunca mais voltar!Insisti, mas ela não cedeu! Fechou o portão sem se despedir e deu ordem ao porteiro para não incomodá-la mais com minha presença!
-Vaca!Egoísta!Filha da mãe!Gritei!
O porteiro ameaçou chamar a polícia!Morri naquele instante!Estava vazio e triste! Andei durante horas sem destino e encontrei um velho colega de trabalho, contei minha história, ele riu e insinuou algum tipo de loucura ou golpe; partiu sem me oferecer sequer um copo dágua!Cambada de egoístas!
Continuei a caminhar como um zumbi, desviando das pessoas e andando sem rumo até que me deparei com a entrada da mata de onde saí hoje cedo ainda tonto, desperto pela luz forte da manhã que, não sei como, penetrara por entre as árvores altas e alcançara meu rosto, fazendo-me despertar do meu sono de uma década; Ao retornar para mata fui acometido de uma imensa sensação de conforto e paz; refleti durante horas sobre tudo que acontecera e cansado adormeci!
Despertei resolvido a lutar pela minha vida nem que para isso fosse a justiça!Teria de haver um jeito de provar a veracidade da minha história e retomar tudo que perdi!Nem tudo, pois Verônica e seu egoísmo e frivolidade não fariam parte da minha nova vida; aliás, muita coisa não mais faria: as festas mundanas, as pessoas interesseiras e oportunistas, minhas filhas mimadas, tudo isso ficaria para trás, enterrado para sempre, caso eu conseguisse retornar ao meu lugar no mundo.
Caminhei em direção a saída e surpreso percebi que o mundo voltara a ser exatamente como era há dez anos atrás!Balancei a cabeça, incrédulo, e atravessei correndo as ruas em direção ao meu apartamento!Os mesmos lugares onde agora pouco eu havia passado e que estavam totalmente modificados pela passagem do tempo surgiam diante de mim como eram;Será que havia algum tipo de portal naquela mata?Como isso podia ter acontecido?Eu tinha certeza de não estar sonhando!Mas àquele não era o momento para questionamentos.Eu precisava voltar para casa e apressei ainda mais o passo até que me peguei correndo feito um louco, esbarrando nas pessoas , sem me importar com nada!Cheguei à porta do meu edifício e parei ofegante!Alfredo o velho porteiro me olhou desconfiado, perguntou se eu havia sido assaltado ou coisa assim!Eu não conseguia falar!Subi e parei diante do meu apartamento!Procurei minha chave nos bolsos e lá estavam elas:, mas elas não estavam lá antes,estavam?Entrei sem fazer barulho e Floppy a poodle da minha filha veio correndo em minha direção!Normalmente eu a afastava rapidamente, mas dessa vez nada me foi mais agradável do que suas lambidas e seu rabinho a balançar furiosamente, seu cheiro, o calor do seu corpinho peludo!Verônica entrou e me olhou surpresa:
- Já consertou o carro?Você disse que ia demorar, mas até que foi rápido não é? Por que você está agarrado com a Floppy?E porque você está com esse aspecto tão sujo?
Ela falava e falava sem parar!Não respondi!Fui para o quarto, tomei um banho demorado, vesti roupas limpas! Minha sensação ainda era de incredulidade; Pedi para Verônica mandar providenciar algo para comer, estava morto de fome, falei.Sentei a mesa, ela me acompanhou meio desconfiada, mas agora um pouco menos loquaz!
De repente uma voz fez meus cabelos da nuca ficarem arrepiados, uma voz sorrateira e malévola:
- Esta é Maria, nossa nova cozinheira; a Joana pediu as contas ontem! Tive sorte em arranjar alguém tão rápido, ela é de forno e fogão!Tava de bobeira na agência hoje de manhã e a contratei na hora!
Virei-me lentamente e lá estava ela: Maria, a bruxa da floresta, a quiromante da maçã e do chá enfeitiçado, em carne e osso!Ela sorriu para mim e piscou! Eu a encarei por longos minutos, acompanhando atônito enquanto ela colocava diante de mim uma terrina de sopa, fumegante e cheirosa, e uma enorme tigela de torta de maçã, segundo ela, sua especialidade!


FIM

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