29 abril 2006

Conto #12 - Eclipse da Lua

Conto #12 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


O Eclipse da Lua


Ainda lembro daquela noite como se fosse hoje. Eu acabara sai de um jantar com alguns amigos de trabalho após um seminário em que eu palestrei sobre desenvolvimento financeiro, e peguei a estrada direto para voltar à minha cidade, onde logo após o almoço, eu teria uma reunião em minha empresa. Teria poucas horas para descanso, sendo que a viagem demoraria cinco horas e chegaria em casa perto das sete e meia da manhã.
A estrada estava calma. Era uma longa reta que se estendida por mais de sessenta quilômetros sem nenhuma curva. A lua cheia no céu claro iluminava imensamente todo o caminho. Olhar para o fim da estrada, era como olhar para os confins do Universo. Sentia-me privilegiado naquele momento. O dia tinha sido maravilhoso, o seminário foi um sucesso. Senti naquele momento recompensado por todo o esforço que fiz durante quinze anos de carreira. Eu jamais esperava chegar aos trinta e três anos, dono de uma das maiores empresas financeiras de todo o estado, que se desenvolvia gradualmente nacionalmente. E para finalizar todos os acontecimentos desse dia, eu era acompanhado por um eclipse lunar que se iniciava no exato momento em que olhei para o céu pela primeira vez naquela noite.
Nunca antes vi uma Lua tão cheia e tão brilhante. Fixei meu olhar para o alto por por alguns segundos voltando logo em seguida a atenção para a estrada. Um calafrio correu meu corpo e senti ele todo arrepiar. Meus braços ficaram tensos sobre o volante me empurrando para o encosto do banco. Pisei o mais fundo que pude no freio do carro e ele derrapou alguns metros antes de para por completo. Fiquei estático por algum tempo e voltei à realidade aos poucos. Minha respiração estava ofegante e meu coração parecia que ia explodir para fora do peito. À frente do meu carro, iluminada pelas luze do farol alto, uma senhora estava parada. Abri a porta do meu carro e sai em direção a ela com as pernas tão trêmulas quanto minhas mãos. Parei alguns metros e a olhei fixamente no rosto que mantinha imóvel olhando à sua frente.
- A senhora está bem?
Ela deu uma piscada forçada e virou sua cabeça olhando para mim.
- Por pouco eu não estaria – disse ela em uma voz fraca e aguda que saia como se uma mão pressionasse sua garganta dificultando a saída de ar. Fez-me lembrar uma bexiga cheia de gás quando se estica o bico e deixa o ar sair vibrando a ponta. Só me lembro de ter visto uma figura igual aquela nos desenhos dos livros de contos de fadas que minha mãe lia quando eu era bem pequeno. Infelizmente não se parecia em nada com a princesa, mais sim com a madrasta malvada. Tinha sua pele enrugara e branca, cercada a cada centímetro por pontos escuros até onde eu conseguia enxergar. Era baixa e tinha as costas um pouco inclinadas para frente; suas mãos eram pequenas, porém seus dedos pareciam mais longos do que deveriam ser. Usava um xale tricotado com fios negros que cobria todo seu ombro e seus braços até os cotovelos. Usava um vestido igualmente negro, porem muito mais gasto e desbotado. Seus cabelos totalmente brancos estavam cobertos por um lenço bem amarrado da mesma cor do xale que deixava alguns fios do cabelo soltos pelo rosto e cobrindo suas bochechas pálidas. Sua boca era mais esticada do que o normal, e seu nariz parecia uma pequena batata recém tirada da terra. Os olhos pareciam ser azuis, mais um azul tão opaco que dava a sensação de que o olho estava morto.
- Sinto muito. Não vi a senhora. Eu estava olhando para a lua quando voltei meus olhos para a estrada e a vi parada no meio do caminho.
A velha olhou por cima de seu ombro em direção à lua que naquele momento tinha um quinto de sua superfície coberta pelas sombras. Ela voltou a olhar para mim com um sorriso que me fez sentir calafrios pelo corpo todo.
- Com o céu totalmente claro fica mais bonito de se observar um eclipse como esse.
- Com certeza não via um eclipse como esse há muito tempo – olhei novamente para a lua semi coberta e deixei passar alguns segundos; senti que deveria sair dali o mais rápido que pudesse.
- Se está tudo bem com a senhora eu vou continuar minha viajem. Tenha uma boa noite.
Procurei sorrir mais o calafrio que eu sentia não deixou o sorriso sair muito natural. Dei as costas para ela e voltei até meu carro em passos apressados. Entro; sento; fecho a porta e ligo as chaves na ignição. Senti uma leve pontada no peito ao perceber que ao virar a chave, não houve nenhum ruído do carro que eliminasse aquele silêncio angustiante que me cercava. Girei a chave mais duas vezes e simplesmente ela deslizada em seu circulo sem fazer com que o carro desse algum sinal de vida. Apoiei minhas mãos no volante e olhei para frente. A velha ainda encontrava-se parada no mesmo lugar que estivera desde o primeiro instante. Forcei meus olhos nela e notei que fazia o mesmo comigo. Alguns segundos se passaram até o momento em que a ela deu um primeiro passo em direção ao meu carro, caminhando para o lado onde eu estava sentado.
Ela aproximou-se lentamente e colocou seu rosto bem próximo da janela, quase passando sua cabeça para dentro do carro. Quando falou, senti seu mau hálito tirar todo o ar puro que havia à minha volta.
- Acho que seu automóvel não vai voltar a funcionar.
Pela terceira vez naquela noite senti o calafrio percorrer meu corpo desde os dedos dos pés até o ponto mais alto da minha cabeça.
- Por que a senhora acha isso? – perguntei à ela com um pouco de falta de ar.
- Se fosse, ele já teria começado a funcionar; ou simplesmente não teria parado de funcionar.
Não consegui pensar em nada para responder a ela naquele momento. Continuou.
- Há uma fazenda aqui perto que tem uma linha telefônica. Posso acompanhar você até lá, se quiser, para que chame algum mecânico que possa te socorrer.
Mal tive tempo de tomar fôlego par falar e ela continuou novamente.
- Só preciso deixar essa cesta em minha casa antes de lhe acompanhar. Está muito pesada.
A velha carregava uma cesta feita de tiras de bambu coberta por uma pano branco amarelado, talvez mais velho do ela.
- E se não for incomodar – ela ainda persistia em falar – você poderia carregar a cesta para mim.
Engoli seco e junto com a saliva a desculpa para recusar aquela oferta.
Caminhei pouco mais de cinco minutos por uma trilha em meio a um mato baixo, cercado por árvores baixas e troncudas com copas recheadas de folhagens. Ultrapassando o limite de duas árvores que estavam muito próximas uma da outra, me deparei com uma paisagem que me surpreendeu. Não consegui definir se era belo ou tenebroso. Vi a poucos metros à minha frente um pequeno riacho de águas calmas que descia na direção contrária em que eu seguia pela estrada. Suas águas brilhavam pelo reflexo da luz da lua que, mesmo já com sua metade coberta de sombra, ainda exibia um brilho fantástico. No centro do riacho, sobre um banco de areia, estava erguido um pequeno casebre onde se via brilhar luzes de velas que saiam de dentro. Andei até às margens do riacho e tive a resposta de como ela chegava até sua casa: pequenas tábuas estendidas sobre pedras que iam até a entrada da casa. Equilibrei-me com a cesta na mão, atravessei o riacho até passar pela porta e colocar a cesta sobre uma pequena mesa de madeira que havia num canto perto de uma janela.
Parei por um instante para observar mais uma vez a lua que já se ocultava faltando apenas um quarto para atingir a escuridão total.
- Aceite isto como forma de meu agradecimento pela sua bondade de me acompanhar trazendo minhas coisas até aqui.
Ao me virar, me deparo com a cesta descoberta em cima da mesa recheada de grandes maçãs vermelhas e lustrosas; e a velha empunhando em uma das mãos em minha direção a maça que me oferecia. Seguida da quarta sensação de calafrio naquela noite, voltei a me lembrar das histórias de contos de fadas que minha mãe lia quando pequeno. Mas afinal de contas, que mal haveria em dar uma mordidinha naquela maçã?
Realmente era uma maçã maravilhosa. Tão doce e saborosa que minha boca salivava a cada mordida. Eu não diria que comecei a passar mal após comer a maçã, mais não posso deixar de admitir que comecei a sentir alguma coisa de diferente comigo. Olhei mais uma vez pela janela e vi o último brilho da lua desaparecer por completo e a escuridão tomar por inteiro seu lugar na noite. Apenas pelo brilho das velas dentro do casebre era possível enxergar alguma coisa.
- Por que você não senta para que agente possa conversar um pouco?
Simplesmente não consegui recusar mais nada do que ela me oferecia daquele momento em diante. Apenas conseguia responder o que ela me perguntava.
- Me dia uma coisa, Douglas – eu não me lembrei de ter me apresentado a ela – o que realmente você fez ao seu amigo Marcos quando você tinha dezessete e ele dezoito anos de idade?
Não tenho idéia de como ela soube sobre o que aconteceu entre Marcos e eu. E eu simplesmente comecei a falar.
- Eu não tinha a mínima intenção de prejudicar o Marcos. Aconteceu uma semana antes do meu aniversário de dezoito anos. Já fazia algum tempo que eu estava usando cocaína e naquele dia na escola descobriram que alguém estava passando a droga para outros alunos. Dois dias depois eu e Marcos iríamos prestar um concurso para uma vaga de estágio em uma das maiores empresas de finanças da época. Marcos tinha mais chance de ser aprovado para a vaga do que eu. Naquele dia na escola a polícia apareceu para revistar todos os alunos. Eu estava com a droga na mochila e dei um jeito de me livrar dela. Resolvi esconder na mochila do Marcos. Não tinha a intenção de prejudicar da forma como ele foi prejudicado, apenas quis aproveitar a oportunidade de me livrar das drogas e fazer com que ele não fizesse a prova. Não imaginei que ele pudesse ser preso e ter sua carreira e seu nome manchados por toda a vida. Quando aquilo aconteceu ele já era maior de idade.
Após eu confessar à velha o que havia acontecido naquele dia, senti um frio diferente de todas as sensações que eu havia sentido na minha vida. Era um frio que saia do meu corpo, com se parte da minha alma estivesse sendo levada embora. E essa sensação se repetia a cada pergunta que ela fazia sobre meu passado e eu sem conseguir me impedir, confessava. Ela buscava minhas nas minhas memórias as piores coisas que eu havia feito, os meus piores pecados.
Não sei quanto tempo isso durou. Quando percebi que novamente conseguia escolher sobre o que falar ou não, a velha se calara. Uma claridade que vinha de fora entrava pela janela ao meu lado. Olhei para tentar organizar meu pensamento e vi a lua voltando a brilhar. A escuridão havia passado. Então a velha falou, me fazendo despertar para a realidade, me trazendo da lua para dentro do casebre.
- Acho que você deveria tentar religar o seu carro. Às vezes esses problemas são passageiros.
Ao olhar para a velha dizendo aquilo, algo nela me chamou a atenção. Sua pele parecia mais lisa, seus cabelos mais escuros, seus olhos mais vivos. Ela parecia estar mais jovem.
Levantei-me da cadeira e me caminhei até a porta. Estava me sentindo mais cansado do que o normal. Ao atravessar as tábuas sobre o riacho, olhei para trás e vi a velha sorridente fechando a porta e me olhando de soslaio. Segui o mais rápido que pude em direção à estrada. Não muito longe de onde estava meu carro, eu o vi com as luzes dos faróis acesos. Ao me aproximar mais, pude ouviu o som suave do motor ligado. No mesmo instante que sentei no banco, vi sobre o acento do passageiro o meu aparelho celular posto de lado. Como pude simplesmente esquecer do meu aparelho celular? Recoloquei-o sobre o banco, fechei a porta e acelerei para voltar ao caminho de casa. Ainda tinha minha cabeça confusa sobre o que havia acontecido momentos antes. Eu olhava para o infinito da estrada quando noto uma coisa diferente em minhas mãos. Não se pareciam com as minhas. Passei uma mão sobre a outra e a senti mais ressecada. Levanto minha cabeça e olho no retrovisor. A visão que tive me espanta até os dias de hoje toda vez que eu olho no espelho. Não era eu. Não podia ser eu. Mas havia ali toas características que eu sempre vi em meu rosto. E realmente a pessoa que eu via no espelho era meu reflexo; porem muito mais velho do que o homem que havia sido aplaudido de pé num auditório lotado horas atrás. Aquela maldita velha, de alguma forma que não consigo explicar, roubou parte da minha juventude e tomou para ela.

Enquanto a lua desaparecia sob a Terra, o Sol surgia forte e vigoroso. Um luxuoso carro de cor prata seguia pela estrada iluminada por aquela luz. E dentro do carro um homem de cabelo grisalho e pálpebras cansadas, seguia seu caminho de volta à sua casa.

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