16 maio 2006

RESULTADO DA 2ª FASE - 1º Concurso GRTV "Janete Clair"

1º CONCURSO DE CRIAÇÃO FICCIONAL “JANETE CLAIR”
DO GRTV (Grupo Roteiros para Televisão)

RESULTADO DA 2ª FASE


RANKING

- com 1 voto:
Conto #2 (“A Cobrança”) de Fernando Américo
Conto #4 (“A Maçã do Horror”) de Bruno Soares
Conto #10 (“Desvão do Tempo”) de Teresa Fazolo
Conto #16 (“O Tempo”) de Lindevânia Martins

- com 2 votos:
Conto # 11 (“Douglas”) de Carlos Abreu
Conto #6 (“Apple Trip”) de Del Schimmelpfeng
Conto #5 (“A Mente”) de Thiego Ladeira
Conto # 14 (“Nada Sabes”) de Helder Miranda

- com 3 votos:
Conto # 19 (“Você pode dizer o que você quiser”) de Marcos Tafuri
.
.
.
E O CONTO VENCEDOR,
COM 4 VOTOS...
.
.
.
.
.
.
Conto #18 (“Títere do Tempo”)
de Amanda Aouad
À VENCEDORA, O PRÊMIO:
UM EXEMPLAR DO LIVRO "Teoria e Prática do Roteiro",
de Edward Mabley e Richard Howard!
Que sirva de estímulo e "norte" à escritora Amanda Aouad,
para que nos brinde com mais textos de sua autoria e,
por certo, obras audiovisuais de qualidade!!!
Parabéns Amanda Aouad!!!!
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS:
Aos associados PAULA CURY e ELTON MENEZES,
que comentaram (na lista do GRTV) CADA UM
dos contos apresentados - eles presentearam os autores com
o tão precioso "feedback" de sua escrita, que na arte
mais solitária do planeta vale OURO!!!
FICA AQUI OS MEUS PARABÉNS PARA TODOS AOS PARTICIPANTES:
(#1)Claudine Logrado, (#2)Fernando Américo,
(#3)Rosa Chernand, (#4)Bruno Soares,
(#5)Thiego Ladeira, (#6)Del Schimmelpfeng,
(#7)Matheus Colen , (#8)Fábio Neri,
(#9)Silvia Machado, (#10)Tereza Fazolo,
(#11)Carlos Abreu, (#12)César Rodrigo Arias ,
(#13)Andrea Cavalcanti , (#14)Helder Miranda,
(#15)Paulo Sacaldassy, (#16)Lindelvânia Martins,
(#17)Rose Mello e (#19)Marcos Tafuri!
LEONARDO DE MORAES

02 maio 2006

2ª fase do Concurso "Janete Clair"

Amigos,

o GRTV (Grupo Roteiros para Televisão), sediado no Yahoo-grupos, apresenta para vocês os CONTOS escritos pelos participantes da 2ª Fase do 1º Concurso de Criação Ficcional "Janete Clair".

Foram recebidos 19 contos nesta segunda fase = 19 participantes.

Todos os contos têm uma MESMA CARACTERÍSTICA - foram escritos tomando por base a "storyline" vencedora da 1ª Fase do Concurso "Janete Clair", de autoria de Rosa Chernand.

"O carro de Douglas, um empresário, sofre uma pane na estrada.
Ele pede ajuda a uma velha que lhe oferece uma maçã e faz previsões.
Quando ele sai do casebre, percebe que foram-lhe 'roubados' dez anos
de sua vida."
- Rosa Chernand - Botucatu / SP - rosachernand@yahoo.com.br

Poderão votar OFICIALMENTE, apenas aqueles que mandaram seus textos - teremos então 19 votos OFICIAIS. Ressalva: os participantes-contistas não poderão votar nos textos de sua própria autoria. Os demais associados estão livres para comentar cada texto, elogiá-los e criticá-los, tanto aqui no blog quanto na lista-Yahoo.

Os 19 contos foram organizados e publicados neste Blog na ORDEM ALFABÉTICA de seus títulos. Clique abaixo para ler cada um deles (ou vá ao índice ao lado esquerdo deste blog):

Conto #2 - A Cobrança
Conto #5 - A Mente
Conto #6 - Apple Trip
Conto #8 - Destino
Conto #10 - Desvão do Tempo
Conto #11 - Douglas
Conto #12 - Eclipse da Lua
Conto #13 - Hibernação
Conto #14 - Nada Sabes
Conto #15 - O Relógio
Conto #16 - O Tempo
Conto #18 - Títere do Tempo



BOA LEITURA!!!!
E aproveitem para verificar
como uma mesma "storyline"
pode dar margem a histórias
absolutamente diversas!!!!
Grande abraço,
(Moderador do GRTV-Yahoo)

Conto #1 - A Cabana, a Velha e a Ampulheta

Conto #1 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


A Cabana, a Velha e a Ampulheta


Douglas dirigia sozinho pela rodovia observando as nuvens, estava as achando bonitas, pareciam algodão no céu azul. Lembrou-se que toda aquela “fumaça de água” já foi líquido correndo nos rios e iria voltar a ser líquido, quando chovesse. Pensou na água, como a água era linda! Brilhante e fluída. Pensava quantas coisas maravilhosas existiam no mundo e ninguém prestava atenção.
Mas isso não significava que Douglas costumava prestar atenção, ou que fosse um homem sensível, filósofo, sábio, harmonioso, que costumava contemplar as belezas do mundo todos os dias. Ao contrário, pensava nisso justamente por causa de sua frieza e insensibilidade. Estava enfrentando um grande problema, uma grande conseqüência de seu jeito de ser. E pensava nas maravilhas do mundo para esquecer, num ato desesperado, o que acabou de lembrar: seu filho Luciano.
Luciano estava sendo processado por causa de uma laje que caiu em cima de trabalhadores em uma construção. Um deles morreu. Aquele era o dia do julgamento. Luciano estava com 31 anos e era o engenheiro responsável na construtora do pai. Douglas dirigia pela rodovia para esquecer tudo aquilo, principalmente porque se sentia culpado, o filho nunca quis ser engenheiro, o pai praticamente o subornara para que seguisse aquela carreira. Subornara com sonhos, perspectivas de um trabalho em conjunto marcado por glórias e sucessos. Mas Douglas não percebeu que incutiu os seus próprios sonhos no filho, em vez de motivá-lo para que seguisse os dele.
Lembrou-se de quando Luciano era pequeno e dizia que quando crescesse seria astronauta. Douglas ficou com medo do menino se perder nesse sonho de criança e não virar nada, e cortou o mal pela raiz. Mas melhor seria se tivesse deixado ele ficar com o seu sonho.
Toda aquela bela paisagem de repente nublou e se tornou cinzenta, a beleza do céu ficou feia. Até o carro enguiçou, em frente a uma cabana. Douglas ficou um pouco encafifado. Que coisa! Nunca tinha visto nenhuma cabana por ali. Achou estranho. Olhou o motor do carro, a água do radiador havia secado.
Olhou para a cabana e, apesar de estar achando muito estranho sua presença ali, entrou no carro e estacionou na frente dela. Era um homem corajoso, não ficava remoendo desconfianças. Na verdade tinha mesmo é que ficar contente. Muita sorte aparecer uma cabana ali.
Foi até lá e bateu na porta. Ninguém atendeu. Como a porta estava entreaberta, acabou de abrir e entrou. O interior era sombrio. Alguns minutos depois, uma velha apareceu e o olhou com curiosidade. Douglas se desculpou e pediu um pouco de água para ele pôr no radiador do carro. Ela disse que ele iria ter que esperar um pouco para sair novamente da cabana, ele imaginou que ela tivesse soltado um cachorro, ou estivesse começando a chover, ou alguma coisa assim.
A velha então disse-lhe que estava com cara de quem tinha sede e fome. Ele respondeu que ela não precisava se preocupar, pois ele queria mesmo era chegar logo na cidade, precisava acompanhar o julgamento do filho.
A velha não lhe deu importância, e repetiu que ele não poderia sair dali naquele momento, falou de um jeito estranho. Depois disse que iria lhe dar algo que matava a fome e a sede ao mesmo tempo e entrou na cozinha, que parecia uma cozinha de bruxa, com panelas grandes e ingredientes estranhos pendurados para todos os lados. Aliás, toda a casa parecia casa de bruxa. Douglas não era desconfiado, como foi dito antes, mas aquela casa parecia daquelas que tinha nos gibis da sua infância. Com objetos escuros, paredes escuras e teias de aranha. Na sala, sofá de veludo vermelho, rasgado no lugar onde se senta. Ele não sabia precisar se veludo vermelho era coisa de bruxa, mas achou tudo muito estranho.
Logo depois a velha voltou lustrando algo com um pano, e, depois de muito lustrar, desembrulhou a coisa e deu-lhe. Era uma maçã. Ele não deixou transparecer, mas levou um susto, pois este ato lhe remeteu a algo que ouvira em sua infância. Mas não conseguia lembrar exatamente o que era, pois Douglas era um homem muitíssimo ocupado, não tinha tempo para ficar guardando na memória assuntos sem importância, como as bobeiras da infância. Sim, porque para ele, tudo que tinha relação com criança era bobeira.
A velha o olhou e perguntou por que estava com os olhos arregalados. Neste momento Douglas percebeu que deixou transparecer um pouco da sua surpresa. Mas como ele era um homem que não gostava de expor suas fraquezas, respondeu que era impressão dela. Ela fingiu que acreditou e sorriu entregando-lhe a maçã. Mas o sorriso dela, para ele, foi maquiavélico. Sorriso de gente que está maquinando algum plano terrível.
Douglas pegou a maçã, e novamente a sensação de que já havia visto aquela cena tomou conta dos seus pensamentos. Tentava, mas não conseguia se lembrar do que era, só se lembrava de que não era coisa boa. Mas, como sempre faz, deixou para lá. Só podia ser bobeira. Coisa de criança é tudo bobagem.
Olhou para a maçã e, perturbado, percebeu que estava com medo. A velha ficou esperando Douglas comer, e ele não comia. Rodava a maçã procurando por uma lagarta. Se tivesse uma lagarta, tinha uma desculpa para não comer. Mas não, a maçã era linda, perfeita. Tão perfeita que parecia uma daquelas maçãs da cesta da bruxa da história da... Lembrou! Branca de Neve! Era isso o que estava querendo lembrar e não conseguia. Ficou pensando que se comesse a maçã poderia desmaiar e só um príncipe iria salvá-lo. Nesse caso, pensou, iria ter que ser princesa, porque se aparecesse príncipe ele ia preferir ficar desmaiado para o resto da vida!
A velha perguntou se ele não ia deixar de ficar olhando para a maçã e comê-la logo. Ele novamente caiu na real e se sentiu estranho por estar pensando aquelas coisas. Teria duas opções, ou não comia e deixava ela perceber que estava com medo, ou teria que comer. Mas como Douglas era um homem orgulhoso, ele nunca iria admitir isso, ainda mais que seu medo provinha das lembranças de uma ingênua historinha de crianças. Então resolveu comer a maçã.
Desse ponto em diante, Douglas não sabe se o que aconteceu foi sonho ou foi verdade. A velha rodou várias vezes em volta dele, ou ele se sentia rodando? Ela colocou uma enorme ampulheta sobre a mesa da sala, virou para que uma areia azul brilhante começasse a cair para o outro lado, e depois disse que ele só poderia sair daquela cabana depois que a ampulheta fosse virada por cem vezes. Disse ainda que não sabia porque ele havia conseguido entrar ali, mas que, com certeza, havia uma boa razão para isso. Douglas desmaiou.
Quando acordou, estava deitado em cima de uma cama horrível, suja e fedorenta. Deu um pulo de nojo. Olhou pela fresta da porta, a velha parecia estar medindo a posição do sol através de uma fresta que tinha no telhado da sala. Tinha uma vassoura encostada na parede. Imaginou que ela devia estar preparando uma decolagem. Tudo nela remetia os seus pensamentos às bruxas das historinhas infantis.
Mas, neste momento lembrou-se de que era um homem racional e que bruxas não existiam. Balançou a cabeça para tirar essas coisas do pensamento. Viu a ampulheta ao lado da cama, o que o fez também lembrar do que ela havia dito sobre esperar cem vezes a areia cair para o outro lado. Passou a mão pelo rosto, pelo tamanho da barba devia estar ali por alguns bocados de dias. Achou tudo uma maluquice. Precisava ir embora rápido. Aproveitou um momento em que a velha saiu da sala e fugiu.
Antes tinha que colocar água no radiador, mas não conseguiu abrir o capô, o carro estava todo enferrujado e velho. Tentou olhar para o interior pelos vidros, tudo estava empoeirado e enferrujado. Conseguiu abrir a porta do motorista depois de algum esforço, entrou, a chave nem rodava, estava emperrada. Parecia mais um ferro velho. Douglas foi embora a pé.
Na estrada, enquanto caminhava, voltou a olhar para o céu, tentando retomar seus pensamentos de antes do carro enguiçar, mas o céu estava diferente. É claro, tinha nuvens e o azul de sempre. Mas estava diferente. Douglas não sabia dizer o quê, mas sentia que algo havia se modificado.
De repente, passou um carro que lhe chamou a atenção. Era de um modelo que ele nunca tinha visto antes, e o que mais o impressionou foi o fato do carro não ser tão novo. Se fosse novo, tudo bem, poderia ser um lançamento. Porque ele nunca havia visto aquele modelo? Logo ele, que era um homem tão “antenado”?
Douglas caminhou por mais ou menos duas horas antes de chegar na cidade, e várias coisas estranhas aconteceram pelo caminho. Passaram mais alguns carros com modelos que ele não conhecia. Algumas construções na beira da estrada ele jurava que não estavam lá. E o pior aconteceu quando chegou na cidade. Tinha muita coisa que não existia antes, e algumas coisas que existiam antes, haviam sumido!
Finalmente chegou em sua casa, que também estava bem diferente, as plantas do jardim, maiores, a pintura mais nova. Ele não se lembrava de ter feito a pintura recentemente. Pegou sua chave para abrir a porta da sala e não conseguiu abrir, até que tocou a campainha. Pensou que todos deviam estar preocupados e iriam ficar transtornados com o seu estado, porém, quem ficou transtornado foi ele. Sua esposa abriu, e estava mais velha. O que era aquilo? Será que era a sogra que havia feito plástica?
- Até que enfim, hein? Entra logo, Douglas! Que roupa é essa? E que sujeira, hein? Veio de alguma obra? Sua barba parece que cresceu hoje! Vai se arrumar! A Daniela está quase doida te esperando, você está atrasado para o casamento!
- Que casamento?
- Meu Deus, meu bem! Você bebeu? O casamento dela! Esqueceu-se do casamento de sua filha? Esqueceu que vai entrar na igreja com ela hoje?
- Casamento da minha filha? Com 15 anos?
- Que 15 anos, Douglas? Você está ficando maluco? Ela está com 25 anos!
Douglas estava estupefato. Não entendia o que estava acontecendo. Sua mulher o empurrou para o banheiro, e praticamente enfiou a roupa em um homem imóvel como uma estátua. Ele não sabia se estava sonhando ou o quê. Concluiu que só podia ser sonho e ficou esperando acordar.
- Onde está o Luciano? E o julgamento?
- Meu amor! Por favor, não vamos lembrar disso agora!
Douglas, sem entender nada foi para a igreja com sua filha de 25 anos. Olhava para ela assustado, e ela estranhou o jeito do pai. Ele ficou totalmente perdido durante todo o casamento. Na festa foi pior ainda, pois as pessoas vinham cumprimentá-lo e ele custava a se lembrar de quem eram. Todas estavam mais velhas, e algumas crianças que diziam conhecê-lo, ele nunca havia visto. E o noivo então! Aquele vizinho chato que chegava todos os dias de madrugada com aquele carro “turbinado” que acordava toda a vizinhança! Douglas mudou de idéia, não era sonho, era pesadelo.
Na semana seguinte, alguns problemas no trabalho o tiraram do sério, porque estava por fora de todos os assuntos. E sua secretária era outra. Os funcionários eram outros, os assuntos eram outros, o prédio estava diferente. O engenheiro responsável não era Luciano, e sim, outro engenheiro. Douglas se esforçava para tentar lembrar o que havia acontecido, mas não conseguia. Tudo piorou quando ficou sabendo de Luciano: se suicidara na cadeia anos antes. Passaram-se os dias, Douglas foi afastado da diretoria da empresa e internado em um hospital psiquiátrico por sua família.
Um dia, fugiu do hospital e saiu andando sem rumo. Andou até chegar a uma rodovia, e continuou andando. Andou por dias e dias, até que passou em frente a uma cabana. Havia um carro velho parado na frente dela. Douglas achou tudo muito familiar, fazia tempo que não tinha este sentimento, o de reconhecer algo. Resolveu se aproximar.
Chegou perto do carro, uma sensação de já ter visto aquilo antes lhe veio à mente. Aproximou-se do vidro da janela, o carro estava bastante enferrujado. Abriu a porta, com certa dificuldade, pois estava emperrada. Olhou por dentro e lembrou-se. Aquele carro era dele! Lembrou-se de tudo: existiu um dia em que olhava a beleza das nuvens, a água do radiador secou, viu aquela cabana, estacionou o carro, entrou na casa, a velha, a ampulheta...
Percebeu que desde aquele dia que as coisas mudaram em sua vida. Tudo mudou a partir daquela velhota, daquela cabana. Bateu na porta, novamente ninguém atendeu. Novamente ele entrou. Novamente a velha apareceu e o olhou com curiosidade. Depois disse:
- Você?
- O que você fez com a minha vida?
- Eu não fiz nada.
- Fez sim!
- Você é culpado de tudo!
- Culpado do quê?! Eu sou uma vítima sua! Você é uma bruxa!
A velha ficou nervosa. Com que permissão Douglas estava interrompendo os seus trabalhos? De repente ela se tornou grande e poderosa, parecia ocupar todo o interior da cabana, seus olhos se tornaram sombrios, falava com uma voz que ecoava para todos os lados, dizendo a Douglas que havia avisado a ele que deveria esperar a ampulheta ser virada cem vezes, que se ele não mudasse a forma como encarava a vida e não adquirisse a sensibilidade para acreditar nas pessoas certas, a cada dia que passasse sua vida iria piorar.
Ele perguntou o porquê disso tudo e quem ela era. A velha lhe explicou que dali, ela controlava todo o tempo do mundo. Aquela ampulheta era uma de suas ferramenta de trabalho. E que dentro da cabana não existia o tempo, ou melhor, ali estavam todos os tempos juntos. Portanto, se alguém entrasse ali, não podia sair a qualquer hora, pois poderia descontrolar seu tempo de vida. E também que ele entrou lá porque Alguém o deixou entrar. Aquela cabana ninguém vê, e se ele viu, é porque Alguém quis que visse.
Explicou ainda, que a partir do momento que ela colocou a ampulheta para trabalhar, cada vez que a areia passasse totalmente para a parte inferior, esse tempo seria equivalente a um ano de vida dele. E esses anos seriam contados a partir da idade que ele tinha, e, quando chegasse ao ano cem da vida de Douglas, voltaria novamente ao ano zero e recomeçaria a contagem. Portanto ele precisava deixar passar cem vezes para que o tempo retornasse a sua idade de quando entrou. Então, quando ele saiu, a ampulheta havia trabalhado dez vezes, e dez anos haviam se passado de sua vida.
Ele perguntou por que então ela o impediu de sair imediatamente, logo depois que ele entrou. Ela respondeu que se ele saísse imediatamente, não poderia garantir em qual ano de sua vida ele sairia.
- Agora, para retornar à idade que você estava quando entrou aqui pela primeira vez, você tem que deixar a ampulheta trabalhar noventa vezes.
- E quanto tempo dá isso?
- Cerca de quarenta e cinco dias.
Douglas achou muito tempo. Mas não tinha outra opção. Aceitou.
Os dias se passaram e Douglas estava feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz porque iria voltar à sua vida normal. E triste por causa do que ficara sabendo que iria acontecer com seu filho dali a alguns anos. Em um desses dias, a velha veio lhe dizer que a ampulheta havia chegado ao ano cem, e que a contagem recomeçaria.
- Então quer dizer que a partir desse momento o tempo começa a contar a partir do meu nascimento?
- Isso mesmo.
- E eu poderia dar uma saidinha em um desses anos anteriores?
A velha não gostou da idéia. Isso poderia causar confusão. Mas Douglas insistiu tanto que ela acabou cedendo. Quando chegou o ano desejado, ele perguntou-lhe como poderia escolher o dia.
- Se concentre no dia que você quer e saia. Mas, por favor! Volte!
O ano era o trinta e quatro de sua vida. O dia ele se lembrava muito bem: era o dia em que seu filho completou cinco anos. Douglas se concentrou nesse dia e saiu.
O carro não estava na frente da cabana. Ele saiu caminhando novamente pela rodovia. Mas dessa vez conseguiu carona, era uma época em que as pessoas ainda tinham coragem de dar carona a estranhos na estrada.
Douglas chegou em sua casa. Bateu, sua esposa, com vinte e oito anos, linda de morrer, abriu a porta. Douglas se emocionou. Passou um belo dia com sua família. De noite chegaria o grande momento, o porquê dele haver pedido para voltar àquele tempo.
Estava sentado no sofá da sala, assistindo o noticiário da TV, seu filho Luciano, então com cinco anos, saiu do quarto com um papel na mão. Douglas sorriu. Tudo igualzinho àquele dia. Luciano então se aproximou do pai, mostrou o desenho e perguntou:
- Pai, eu quero ser astronauta. O que o senhor acha do meu foguete?
Mas, que coisa linda seu filho, tão pequeno, tão meigo. Como não havia notado tanta beleza nele quando passara por aquela época? O desenho que ele fez era simples, de criança, pintado com aquarela. Como tivera tamanha coragem de dizer que aquele era o desenho mais feio que tinha visto, e que ele nunca conseguiria ser astronauta, porque na verdade essa história do Homem ir à Lua era tudo mentira, apenas por medo do filho levar a idéia de astronauta adiante e não se formar em engenharia, como o pai queria que ele fosse?
Depois que falou isso, o filho nunca mais tocou em assunto de foguete. E Douglas naquele momento pensou, que se não tivesse falado dessa forma, quem sabe o filho não seria um piloto de aviões, ou um engenheiro mecânico formado no ITA?
Mas agora a vida magicamente lhe deu uma segunda chance, então virou-se para o filho e disse:
- Este é o desenho mais lindo que já vi no mundo e você vai ser o astronauta mais corajoso!
- Obrigado, papai!
Luciano pulou no colo do pai e o beijou. Douglas o viu voltar para o quarto. Levantou-se do sofá, alcançou a rua e tomou o rumo da cabana. Quando chegou, tudo estava limpo e brilhante. A cabana estava transformada. A velha nem era velha mais. Era uma bela duma coroa.
Douglas ficou mais alguns dias para completar a contagem da ampulheta. Perguntou à senhora o porquê de “cem”. Ela lhe disse que o corpo do homem possui a garantia de cem anos, portanto, se usa essa idade como base de cálculos. Ele então perguntou por que a maioria não chega aos cem anos.
- Quando você compra uma roupa que garantem ser duradoura e de boa qualidade, isso quer dizer que quando chegar em casa pode jogar essa roupa na fogueira e ela não vai se queimar?
Douglas calou-se.
Quando a contagem da ampulheta chegou a cem, finalmente chegou o dia de deixar a cabana. Concentrou-se no dia em que dirigia o carro pela rodovia e saiu. Seu carro estava ali, no mesmo lugar, colocou água no radiador, entrou, ligou o motor, olhou para a senhora e falou:
- Antes de dizer Adeus, só mais uma coisinha.
- Pode dizer.
- Porque eu via a cabana suja e você velha quando cheguei?
- Porque esta cabana também serve como espelho.
Douglas se foi. Chegou em casa, sua sobrinha o esperava na porta.
- Corre, tio! Corre! O senhor vai perder!
Pensou que deveria já estar acontecendo o julgamento de Luciano.
- O Luciano, tio! Corre!
Era o Luciano mesmo. O coração de Douglas gelou. Entrou rápido e com medo. Todos estavam na sala: mãe, pai, sogro, sogra, irmãos, irmãs, cunhados, cunhadas, sobrinhos, sobrinhas e repórter com câmera e tudo! Todos em frente à TV. Mas a filha e a esposa não estavam. Quase desmaiou, pois o negócio devia ter ficado pior, o julgamento estava até passando na TV! Tinha até a imprensa na sua casa!
- Vem sentar aqui, Douglas! Rápido!Douglas sentou-se no sofá. Estava tão perturbado que nem conseguia enxergar a TV, nem conseguia enxergar as pessoas. Uma contagem regressiva começou a acontecer, quando soou o “zero”, um estrondo, e na TV, um foguete decolava enquanto todos sorriam, choravam e batiam palmas ao mesmo tempo. O foguete subia cada vez mais no espaço, depois de alguns minutos, uma imagem mostrou sua esposa e sua filha observando de perto o foguete, emocionadas. Depois, outra imagem do interior do foguete aparece, um astronauta faz sinal para a câmera, em sua roupa, a bandeira do Brasil. O câmera-man que estava dentro de sua casa o filma. Ele se vê na TV enquanto o locutor o apresenta como o pai do astronauta Luciano.

Conto #2 - A Cobrança

Conto #2 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


A Cobrança


Quando o pneu estourou, Douglas apenas ouviu um barulho surdo. No instante seguinte, ele não conseguia controlar o carro. Ainda teve tempo de gritar um palavrão em seu pensamento – Douglas nunca conseguiu falar palavrões em voz alta – antes de sair da estrada e bater numa árvore.
Seu primeiro pensamento foi: “Droga, vou perder a reunião em Campinas amanhã!” Estremeceu. Tinha que agradecer a Deus por estar vivo. O único problema é que Douglas não acreditava em Deus.
Lá fora, a chuva continuava forte, castigando o limpador de pára-brisa, que ia de um lado para outro rápido, mas sem conseguir revelar nada do que se passava para lá do vidro. Douglas já tinha contado: o limpador de pára brisa ia e voltava duas vezes a cada segundo. Tentou contabilizar para si mesmo quantas vezes o pára brisa teria varrido o vidro desde que a chuva começou. Olhou no relógio. Há exatos 12 minutos e 47 segundos os primeiros pingos tinham começado a cair. Isso significava… 1534 voltas do limpador de pára-brisa. Desde a infância, Douglas tinha essa obsessão de ficar medindo o tempo por outras unidades que não os segundos e minutos. Dava a impressão de poder esticar ou comprimir o tempo, dependendo do que ele usava para medir. Os seus próprios passos, as batidas de seu coração, os arrulhos do pombo de Ana Lúcia…
Ana Lúcia. Era a segunda vez que Douglas pensava nela hoje. A primeira foi quando, procurando uma lâmina nova para seu aparelho de barbear, tinha encontrado uma de suas calcinhas no fundo da gaveta do banheiro. Lembrou-se dela, de como eles transavam na hora do banho, do gosto de sua boca impregnado da água do chuveiro…
Não podia durar. Claro que não podia durar. Eles eram muito diferentes. Ana Lúcia tinha loucura por animais, de qualquer tipo. Douglas não queria ter nada que dependesse dele, como uma criança, ou um animal. Tinha em mente que queria ter seu primeiro milhão de dólares antes dos 25 anos de idade. Qualquer coisa que se pusesse entre ele e sua meta era encarado como um obstáculo que tinha que ser ultrapassado.
Obstáculo. Problema.
Foram estas as duas palavras que Douglas usou quando Ana Lúcia contou a ele que estava grávida. Ela chorou, brigou, gritou… Não conseguia encarar o fato de Douglas não ver as coisas da mesma maneira que ela. Para ele, um filho, àquela altura da carreira, significava renunciar a muita coisa. A tudo o que ele tinha sonhado. O reconhecimento, a fama, o dinheiro… A última frase da discussão foi sua: “Não tenho tempo para um filho agora”. A frase ainda ecoava na sua cabeça, e Douglas não entendia por quê.
Pensando bem, ele entendia sim. Douglas se lembrou da frase quando um amigo comum lhe deu a notícia: aquele carro que tinha espatifado a traseira de vários veículos estacionados, para depois capotar, aquele carro que tinha sido notícia em todos os jornais, era de Ana Lúcia.
Douglas foi visitá-la. Levou um buquê de flores. Sentia-se quase alegre, e por conseguinte culpado. Mas não podia deixar de ter a sensação de que agora tudo se resolveria entre eles; Douglas e Ana Lúcia tinham muito em comum, e ele ainda se sentia ligado a ela. Agora que o “acidente de percurso” já fora tirado do caminho de ambos, nada mais justo que continuarem sua jornada rumo ao sucesso juntos.
Mas Douglas não pôde dizer nada disso a ela. Ana Lúcia começou a gritar ao vê-lo, sem ouvir nada do que ele tinha a dizer. Por fim Douglas desistiu, e foi embora muito assustado. Durante muito tempo, Douglas ainda se lembrava dos gritos de Ana Lúcia; chegava a sonhar com eles. Mas logo chegou à mesma conclusão de sempre em todos os aspectos de sua vida: não tinha tempo para remorsos, precisava continuar. E quando acordava de noite com os gritos de Ana Lúcia, tomava dois comprimidos de dormir com vinho e não pensava em mais nada.
E por falar nisso, Douglas pensou, não tinha tempo para ficar parado, naquele carro, sob a chuva, pensando em coisas que já aconteceram há dez anos atrás. Reparou que chovia menos agora, e que à direita da árvore em que tinha batido, havia um casebre. Não sabia como a chuva não o tinha jogado ao chão; era um casebre feito de lata e madeira, sozinho em meio ao descampado. Douglas podia jurar que não o tinha visto antes, mas não podia ter certeza, não na condição em que se encontrava, depois de um acidente de estrada ao qual miraculosamente havia sobrevivido. Usando o paletó como protetor para a cabeça e a pasta de couro como um escudo contra a chuva, atravessou o espaço que separava seu carro do casebre.
Bateu na porta uma, duas, três vezes. A cada vez suas batidas ficavam mais desesperadas, já que a chuva molhava seu terno novo e podia estragar o couro da pasta. Ao final da terceira batida, a porta se abriu. Douglas viu uma velhinha embrulhada em roupas de frio surradas, o nariz vermelho se destacando do rosto emoldurado pelo lenço preso com grampos.
- Meu filho, pelo amor de Deus, entre! Olhe só como você está!
Douglas entrou no casebre, que parecia bem maior do que do lado de fora. Deve ser impressão, pensou ele. A velha insistia para que ele tirasse o paletó, para não pegar um resfriado.
- Isso faz muito mal, meu filho, muito mal. Vá sentando, vou fazer um café. Bem quentinho, bem quentinho!
Douglas se sentou num dos banquinhos de madeira, todos eles diferentes, colocados em torno de uma mesa com os lados quebrados. Além destes móveis, só havia uma cama com um crucifixo por cima, um fogãozinho a gás, um lampião, e duas caixas de madeira empilhadas, que serviam para guardar as panelas. Em cima da segunda caixa, além de um vaso com algumas flores, estava um prato com cinco maçãs. Douglas não tinha jantado; disse a si mesmo que comeria alguma coisa no hotel de Campinas. Por isso a visão das maçãs chamou sua atenção: elas pareciam tão gostosas, tão vermelhas…
- Tá aqui o café… Toma logo, pra esquentar o peito, vai!
Douglas não ousava falar. Tinha medo de trair seu asco pelo lugar. O medo mais secreto de Douglas sempre tinha sido se transformar numa dessas pessoas que vivem nas ruas, que carregam seus pertences para lá e para cá num saco plástico, que não têm controle sobre sua própria vida. Não queria dar a impressão que estava reparando na pobreza do casebre; por isso, manteve seus olhos nas maçãs. Por isso e pelo fato de ter começado a sentir o cheiro que elas exalavam.
- Quer uma maçã?
Douglas se assustou. Tinha tomado apenas dois goles do café, e não esperava que a velhinha adivinhasse seus pensamentos. Mas por outro lado, ela não precisava adivinhar nada; ele é que não tirava os olhos das maçãs.
- Acho que vou aceitar sim… Eu posso pagar, não se preocupe.
- Ah, pra quê? Eu não como maçã, trouxe aqui pra quando a minha neta vem me visitar. Ela gosta.
- A senhora tem uma família? Por que não mora com eles?
- Ah, meu filho, a gente quando fica velha não aguenta mais ficar perto dos outro. Prefiro ficar aqui no meu cantinho, sossegada! – e riu, mostrando apenas os dentes da frente, bastante encavalados. Alcançou o prato e ofereceu as maçãs a Douglas. Douglas pegou uma delas, deu uma mordida, e foi invadido pela mesma sensação da infância, ao descobrir a textura da primeira maçã sob seus dentes. Há quanto tempo não parava para saborear uma comida, uma bebida, uma fruta como aquela… Em menos de um minuto tinha comido toda a maçã, e pegou outra.
Só ao terminar reparou que a velhinha estava sentada à sua frente, segurando um baralho de cartas grandes.
- Quer que eu leia a sua sorte?
- Desculpe, não tenho temp... – já ia dizer Douglas, e percebeu que tinha muito tempo, enquanto ninguém soubesse que ele estava ali. Por isso buscou logo o celular no bolso. Fora de área.
- Não é possível… A gente paga uma fortuna para ter um celular, para poder estar sempre em contato com o mundo, e o celular não funciona.
- Eu nunca tive isso não senhor.
- Pois não lhe faz falta, acredite… Não funcionam mesmo!
A velhinha se juntou a sua gargalhada. Mas continuava com o baralho nas mãos. Douglas ficou sem jeito – a velhinha já tinha feito muito por ele – e deixou que ela lesse a sua sorte.
- Corte o baralho, seu moço. E depois tira cinco carta e põe em cruz, com uma no meio.
Depois que Douglas fez o que ela pediu, a velhinha virou todas as cartass.
- E então?
- O senhor tem filho, moço?
- Eu? Não, claro que não. Por quê?
- Essa carta aqui. O Louco. Quando vem essa carta, geralmente é um filho da pessoa.
- Não pode ser.
- É bom que não seja. Porque aqui o senhor tem o Julgamento.
- E isso quer dizer… o quê? Que um louco vai me julgar?
- Não. Que o seu filho quer justiça.
Douglas ficou sem palavras. Quando falou, tentou usar um tom quase professoral, como se falasse com uma criança de 3 anos de idade.
- Mas eu já lhe disse… Eu não tenho filhos.
- Já teve perto de ter um?
- Já.
- Sabia. Filho malquisto, moço, é uma coisa de doido. Quando vai pro outro lado, quer voltar. Ele fica acompanhando a infância dos outro menino, pra ver o que perdeu.
- Olha só… Eu acho que não foi uma boa idéia. Vamos parar…
- Logo depois tem o Carro. A carta que vai sempre pra frente, sem parar, sem olhar pra trás. O senhor dá valor pro tempo.
- Claro que sim. Tempo é dinheiro.
- Falou tudo. Depois vem a Roda da Fortuna. A sorte. O senhor veio parar aqui por quê?
- Escute, dona, eu não estou gostando muito dessa conversa.
- … e no final, o mágico.
- A senhora quer dizer que eu vim parar aqui por acaso, e encontrei um mágico? Que coisa mais estúpida! Eu só encontrei a senhora!
Pela primeira vez, Douglas viu o rosto da velha se alterar. A expressão bondosa deu origem a linhas e rugas que se encontravam enquanto ela falava. Os olhos, encovados, pareciam ter desaparecido. Era quase como uma máscara falando sozinha.
- Não. Eu não sou mágico, não, seu moço. Eu só vim cobrar. O senhor tinha uma dívida com alguém, e eu vim cobrar.
- Alguém quem? Que história é essa?
- Já tá feito, moço.
- O que é que tá feito?
- A justiça, moço. O senhor devia. O senhor pagou.
- Paguei o quê? Ficou louca? Quer saber do que mais, eu vou embora daqui.
- Pode ir, moço. A chuva já parou.
Só então Douglas percebeu que o barulho insistente da chuva não existia mais, há muito tempo. Pegou rápido suas coisas, deixou uma nota de dez reais na mesa – pelas maçãs, que estavam realmente muito boas – e saiu.
Passando pela porta, ele sentiu tudo.
Sentiu-se de novo criança, nos braços de Ana Lúcia, sentindo o leite quente jorrando do seio de Ana Lúcia para sua boca, uma sensação boa, tão boa quanto a primeira bala, o primeiro chocolate, os primeiros passos – ai, mamãe, caiu, e Ana Lúcia vinha pegá-lo, e agora brincava por entre outras crianças, descendo pelo escorregador, e agora sentia o toque de sua mãe dando-lhe banho, e o suave aconchego de sua cama de noite, sem papai, sem ninguém para dividir mamãe, e pulando, e brincando, e carrinho, e polícia, e bandido, e desenho animado, pernalonga, donald, papaléguas, coiote, bum!, e banana com aveia, e gangorra vendo o chão andar pra cima e pra baixo, e subindo em árvore, e soltando pipa, e beijo no cantinho do colégio, e futebol, e gol!, e então saiu do casebre.
Já era dia. O sol brilhava. Seu carro não estava mais lá. Aliás, não era a única coisa que estava faltando.
O casebre também não estava mais lá.
Andou muito na estrada, que lhe parecia maior. Não conhecia mais as curvas e retas; achava diferentes e familiares certas paisagens. Entrou num restaurante de posto de beira de estrada, que ele nunca tinha visto antes. As pessoas vestiam roupas estranhas, mas não pareciam se importar com isso. Aliás, as pessoas é que pareciam reparar em Douglas. Aparelhos que não conhecia atravancavam os cantos do posto; ele tentou pedir uma cerveja, mas não tinha da sua preferida. Por fim, cansado, Douglas entrou no banheiro para se lavar.
Olhou no espelho e não se reconheceu. Estava mais velho, tinha o cabelo ainda mais ralo, os olhos mais cansados – teve que chegar mais perto para se ver perfeitamente. Parecia mais velho.
Dez anos mais velho.
E então se lembrou do que a velha disse, há algum tempo (quanto tempo mesmo?)
Vim cobrar uma dívida.
Douglas entendeu o que é que teve que pagar.
Encostou sua cabeça no espelho, pela primeira vez despreocupado, pela primeira vez sem pensar em correr para esticar os minutos. Deixou-se inundar pela paz branca e silenciosa do banheiro, sentiu o cheiro limpo e asséptico dos detergentes. Sentiu-se leve. Algum tempo depois, Douglas saiu, marcando com os saltos dos sapatos o tempo que o separava do resto de sua vida.

Conto #3 - A Maçã... e assim se fez a História

Conto #3 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


A Maçã... e assim se fez a História


Era um fim de tarde quente. Depois de um dia cheio de telefonemas , encontros com clientes e conversas intermináveis sobre negócios , fui interrompido pela voz de dona Flávia... às vezes penso que ela é meu anjo da guarda incorporado na forma de secretária. Ela me mima o tempo todo, e arriscaria dizer que sou bem sucedido graças ao talento e aos esforços dela.
Quando a porta do meu escritório se abre e ela chama a minha atenção para o relógio, que tenho bem em frente a minha mesa, sinto-me como um garoto sendo liberado para o recreio.
Hoje é 19 de junho de 2006, dia do meu trigésimo aniversário, vou comemorar em uma chácara que fica numa cidade próxima. São apenas vinte minutos de estrada, e apesar do cansaço, estou ansioso.
Guardo os documentos, verifico se está tudo em ordem.
Dona Flávia ainda espera por mim, os outros funcionários já saíram.
Sinto vontade de convida-la para a minha festa, mas sei que recusará, com muita educação, dizendo ter um compromisso inadiável. Sei o quanto ela adora as novelas das sete, das oito , e que por amor ao trabalho, abre mão de assistir a das seis.
Ao sair do elevador, pela “enézima” vez ela me diz: “- Feliz aniversário, senhor Douglas”.
Gosto do seu sotaque carioca.
A vida vale a pena e me realizo desfrutando cada momento, fazendo bons negócios, me divertindo com os amigos ou simplesmente guiando.
Em relação às mulheres, estou decepcionado. Sinto como se estivessem sempre tentando tirar alguma coisa de mim... parecem tão iguais, só mudam a cor da calcinha. Desejo, realmente, conhecer uma que abale minhas estruturas, que mude o rumo da minha vida e faça de mim um outro homem.
Taí, hoje, meu desejo de aniversário é: encontrar uma mulher e envelhecer ao lado dela.
A tecnologia e os estudos avançados na área médica, não permitem que envelhecer seja doloroso para quem tem o espírito jovem.
Falta pouco pra chegar no pedágio, mais dois quilômetros e estarei na chácara.
Parece que tem alguma coisa na pista... ainda não consigo ver o que é.
O que será? Está imóvel. Deve ser um pedaço de pneu, ou uma caixa...uma pedra? Vou passar por cima mas tomara que não acerte os pneus .
Que merda! É uma coruja!
Não posso desviar pois tem um caminhão bem aqui na outra pista. O que essa idiota vai fazer? Droga, está vindo de encontro aos faróis!...
Perco o controle do carro, derrapo e vou parar no acostamento, o carro trava!
Pane geral - o painel inteiro apagou.
Abro a porta e salto rapidamente com medo de uma colisão, ainda estou atordoado e não entendo o que aconteceu.
Não vejo nenhum posto policial, nem posto de gasolina... aliás onde estão os carros desta rodovia?
Celular nestas horas é uma maravilha, mas com a bateria descarregada ?!
Ninguém merece...
Não consigo me localizar, será que saí da estrada principal e peguei outra, que eu não conheço?
Dá vontade de chutar o carro, mas não resolveria meu caso.
Consigo perceber uma casa na escuridão...- espero que não tenha nenhum cachorro bravo, de plantão, e nem buracos pra eu torcer meu pé.
- Ô de casa!? Tem alguém aí?
Ei !!!! Tem alguém em casa? Preciso de ajuda.
Pela fresta da janela surge uma tênue claridade a porta se abre e aparece uma velha baixinha e muito magra com uma lamparina na mão.
- Boa noite!
- Desculpe-me por bater na sua porta a essa hora, uma coruja veio de encontro
ao meu carro, perdi a direção.
A bateria do meu celular descarregou e preciso de ajuda.
- Ao contrário do que o povo fala, coruja traz muita sorte, e mudanças!
Entre meu jovem, eu já esperava por você.
- Não, eu nem quero entrar. Só preciso de um telefone e um mecânico!
O bicho não teve sorte, pois bateu com toda a força contra o carro.
- Não se preocupe, ela sabia que seria assim. Não cai uma folha sequer, se não
estiver escrito.
Ela calmamente estende sua mão magra, enrugada e fria. Toda a fragilidade física daquela mulher desapareceu quando senti a força do seu olhar. O menino em mim, apareceu outra vez – e sem oferecer resistência, entrei.
- Que bom que tenha vindo pedir ajuda.
Sentei-me num caixote de madeira que servia de mesa ou banquinho.
- Álias, só poderia vir aqui, pois não vi nenhuma outra casa ao redor.
- Qual é o seu nome meu jovem?
- Me chamo Douglas.
O casebre era muito pequeno, muito pobre.
Achei melhor justificar a minha pressa:
- Tem gente me esperando.Venho muito pra esses lados e nunca me aconteceu nada parecido.
A velha se afasta e volta com um pratinho de papelão com figuras de palhacinhos , nele uma maçã cortada em cruz.
- Hoje, por acaso, é seu aniversário , não é?
Ela se acomoda na cama.
Fico intrigado - afinal, como aquela velha poderia saber do meu aniversário?
- Por que a senhora pergunta? Realmente, é meu aniversário.
Do nada ela começa a cantar: “Parabéns pra você, nesta data querida. Muitas felicidades e surpresas na vida!”
Deu um sorriso murcho, banguelo e pareceu se divertir comigo.
- Não é só isso que sei sobre você. – diz ela.
Aquela conversa estava me aborrecendo e resolvi me levantar, agradecer e sair. Esperaria no carro. De manhã, tomaria providências.
- Não faça isso meu jovem. Eu preciso de você. E hoje, especialmente, você
precisa de mim. Temos muito pra falar.
Quais seriam as intenções desta velha?
- Você não vai se arrepender de passar esta noite aqui, a temperatura vai cair muito.

- A noite está super quente.
- E a tempestade?
Ela abriu a porta, uma rajada de vento invadiu o casebre. Parecia mais o prenuncio de um tornado. Em seguida a chuva despencou. Eu não podia acreditar. Tive a impressão de que havia uma equipe de produção em efeitos especiais, fazendo eu “pagar mico”.
Aquele barraco suportaria o vendaval?
- Você fica aqui esta noite e procura ajuda amanhã. Nessa escuridão, embaixo
desta tempestade, você “levaria uns dez anos” pra chegar num lugar pra
conseguir socorro.
A velha sentou novamente na cama, que tinha um colchão de palha. Eu me acomodei numa rede que estava pendurada diante dela.
Então, me ofereceu um pedaço da maçã. É claro que recusei. Como poderia pensar em comer numa situação dessas?
Lembrei-me de todos que deviam estar na chácara e bem preocupados com o meu atraso, afinal sou pontualíssimo; graças à dona Flávia.
Interrompendo meus pensamentos, me dei conta de que ela estava propondo-me um desafio: caso eu comesse partes da maçã, poderia ter acesso a qualquer informação sobre qualquer pessoa. Sendo que uma das partes me daria o direito de saber sobre a minha vida.
Fora os aborrecimentos que passei nos últimos minutos, ainda teria que agüentar uma vidente enchendo meus ouvidos com baboseiras?
Logo vi que a noite seria longa.
- O que vai pedir em troca, como pagamento?
Ela respondeu que aceitaria o que fosse de menor importância pra mim.
Lá fora, o céu desabava em água e àquela altura do campeonato só me restava topar a brincadeira.
Antes ouvir besteiras do que ser surdo.
Para que a noite passasse rápido, concordei com a idéia do jogo de adivinhações.
- Se você comer este pedaço eu vou dar informações sobre a vida profissional de quem você quiser.
Pelo jeito dela falar me senti a própria Branca de Neve sendo enganada pela bruxa.
- Este outro pedaço... você pode ficar sabendo da vida amorosa de qualquer um:
escândalos, amantes , fantasias. – ela falava com orgulho.
Muito interessante... agora só faltava aparecer os sete anões dançando à minha volta, usando capinhas de chuva...
- No terceiro pedaço – continuou - revelarei os segredos mais secretos de cada
um deles.
A quarta parte: descreverei o que vai acontecer com você nos próximos anos.
Peguei o primeiro pedaço e pedi para que ela me contasse a vida amorosa de cada um que eu conhecia. Quando ela começou a falar, fiquei fascinado!
Com tanta riqueza de detalhes não poderia ser mentira - e identifiquei informações verídicas que ela jamais teria conhecimento.
- E então? - perguntou ela. Devo continuar?
Eu não queria dar o braço a torcer, mas estava muito curioso para saber mais, sobre a vida de todo mundo! Acabei sucumbindo ao desejo e comi mais um pedaço.
Saber da vida intíma , dos outros é legal, mas não me traria lucros. Então decidi escolher sobre o item: vida profissional.
A velha foi brilhante, me deu dicas precisas e antecipou cada passo dos meus concorrentes.
Lembrei-me do pessoal da chácara ... mas eu não poderia nem pensar em sair agora. A conversa está muito boa e a velhinha tem um dom apurado para prever o futuro.
Ela me alertou para fazer só mais uma escolha, pois estava amanhecendo o dia e ela só podia “enxergar” o futuro durante a noite. Podia escolher entre: ouvi-la contar sobre minha vida, ou ter acesso aos segredos mais ocultos de quem quer que fosse.
- Minha vida, não tem mistério, tenho estabilidade econômica, sou bem sucedido e só preciso encontrar a mulher certa para constituir uma família. E isso depende só de mim.
- Será?
- Claro, meu destino sou eu que traço.
- Se você diz, eu acredito.
- Opto por saber os segredos íntimos de todos que eu der o nome... pode ser?
- Você é quem manda.
Eu ouvia extasiado, mas não resisti ao cansaço e dormi.
Acordo sem saber onde estou, levo ainda um tempo pra lembrar que lugar é aquele. Procuro pela velha, ela não está.
Quando abri a porta , o sol estava a pino, saí ainda atordoado e fui andando em direção à estrada para ver o carro. Sempre dava uma olhada pra trás e tentando entender o por quê daquele casebre perdido no meio de um pasto imenso.
Indo em direção à estrada “dei de cara” com a placa de um shopping, do outro lado da rodovia . Estranho não tê-lo visto na noite anterior.
Quando avistei a pista, fui tomado de um tremendo desespero pois meu carro não estava mais no acostamento.
Atravessei a estrada e fui em direção a uma oficina mecânica que tem na parte externa do shopping. Enquanto andava podia ouvir as batidas do meu coração. Percebi as pessoas me olhando de maneira estranha , as crianças até viravam a cabeça para me observar melhor e eu percebi uma mãe dando “ um tranco’ no braço de um garoto sardento, de olhar insistente.
Perguntei a um empregado da oficina se ele tinha visto algum guincho levar um carro que estava no acostamento. Ele perguntou qual era a marca, quando falei, ele e outros dois, caíram na gargalhada.
Fiquei invocado e perguntei qual era a piada.
- Uma lata velha dessas... você deveria agradecer a quem levou o carro embora!
Neste instante, minha mente deu um estalo! No trajeto até ali, eu estranhei os modelos de carros que eu tinha visto, as roupas das pessoas que passavam por mim e até suas fisionomias estavam diferentes. A arquitetura do shopping também me pareceu muito original.
O mecânico perguntou o que estava acontecendo. Contei tudo - apontei o casebre do outro lado da pista e falei sobre a velha.
Ele me olhou como se eu fosse maluco, disse tratar-se de um engano pois todos sabiam que ali, naquelas terras, só transitava uma mulher! Uma poderosa empresária: a dona daquele shopping.
- Ela também exporta maçãs e guarda várias caixas naquele depósito. Vem
cientista do mundo todo pra pesquisar. Dizem que ali, elas se conservam
mais vermelhas, muito mais doces e suculentas.
- Uma vez conseguimos driblar os capangas da fazenda, e vimos o depósito
lotado de caixas de maçã.
- O cheiro deixa a gente doido! – diz o gordinho.
- Hoje, bem cedinho dona Eva passou por aqui. A mulher é tão bonita, caboclo,
é tão gostosa, que de ontem pra hoje parece que remoçou uns dez anos!
comentou outro rapaz.
- Vai ver foram os dez anos do desaparecimento do marido que “fez” bem pra
ela.
Todos riram.
- Dá só uma olhada no jornal .
Quando o mecânico colocou o jornal sobre o balcão, à minha frente, senti uma descarga gelada dentro de mim, quase perdi os sentidos. Na primeira página estava estampada minha foto.
Arranquei o jornal das mãos dele e li a manchete: “DEZ ANOS DO DESAPARECIMENTO DO EMPRESÁRIO DOUGLAS BELUZZO”.
O texto dizia: “Sua admirável esposa tomou as rédeas da empresa, triplicou o patrimônio e até hoje ela não perdeu a esperança de encontrar seu marido ou pelo menos localizar o seu corpo para dar-lhe um funeral digno”.
No canto da página estava a foto de uma mulher, linda. Aproximei o jornal e não pude crer, reconheci a fortaleza daquele olhar.
Jamais esqueceria, era o olhar da velha.
- É a velha! - gritei.
Algo dentro de mim dava esta certeza, de não se tratar de uma filha ou neta, mas sim da própria velha que me acolheu durante a noite. Só que muitos anos mais nova.
- Tá ficando doido, ô velho maluco!
Como velho maluco , se acabei de completar trinta anos e não aparento a idade que tenho?
Ao abaixar o jornal, vi do outro lado da oficina a figura de um homem grotesco, envelhecido , cabelos desgrenhados e bem grisalhos, pele envelhecida e roupa puída.
Senti desprezo por ele. Mas no mesmo instante corri de encontro a ele e percebi que se tratava da minha imagem refletida no espelho.
-Meu Deus, não é possível! Como pôde acontecer isso comigo?
Diante dos meus olhos estava um homem acabado, envelhecido e imaginei que talvez tivesse sido drogado pela velha e passado algum tempo desacordado. Pela minha aparência, alguns dias, quem sabe... Corri até o balcão tive mais um choque - vi a data do jornal: 19 de junho de 2016.
- O que está acontecendo? – perguntei furioso. Vocês são loucos ou querem me deixar maluco?
- Calma, tio.
- Esse miserável, deve estar drogado ou bêbado. - falou o mais invocado dos
três.
Nesse instante lembro do acordo que fiz com a velha para participar do jogo. Dei mais valor à vida e ao futuro dos outros.
- Aquela bruxa velha, vagabunda, deve ter achado que minha vida não tinha a
menor importância pra mim. Ela me roubou! Tirou tudo o que eu tinha, me
enganou!
- Roubou o quê, de um pé rapado que não tem onde cair morto?
Insisti, mesmo sabendo que ninguém acreditaria em mim:
- Ela me roubou ! Aquela mulher maldita, acabou comigo...
Naquele instante um dos rapazes, solidário à minha dor, como só um homem traído sabe ser, perguntou:
- Espera aí amigo, não fica desesperado. Afinal, o que ela roubou de você? Seu
carro?
- Não, essa bruxa roubou muito mais do que eu ou você poderíamos imaginar ...
- mostrando desesperadamente a data do jornal - ...ela roubou dez anos da
minha vida !
Ninguém parecia entender o que eu dizia. Onde estaria dona Flávia?
-É companheiro, minha ex-mulher também acabou com a minha vida; mas as
mulheres são assim. Tem coisas nesse mundo que não mudam nunca! Vem comigo, vou te pagar um Mac lanche feliz, e uma tortinha de maçã!

01 maio 2006

Conto #4 - A Maçã do Horror

Conto #4 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


A Maçã do Horror


Noite escura. Alta velocidade naquela estrada vazia. Douglas envolto em seus pensamentos. Gritos confusos em sua cabeça, o suor frio escorrendo na testa. Gritos e mais gritos: “Você não tem visão de empreendedor! Desse jeito temos que desmanchar a nossa sociedade!...” É... o seu sócio anda nervoso. “Fontoura... Que saco”, diz ele. A gravata lhe aperta o pescoço e ele solta-a. Já teve um dia turbulento, aquela empresa cheia de pessoas. Planos, projetos, vendas, índices, balanços... Pensa em sua esposa: “Você não tem tempo para sua família, desse jeito não vai dar! Nem alimentar-se direito, você se alimenta...” Nisso, seu pensamento é interrompido. “Porra, que droga de carro”, grita Douglas.
À sua frente ele não enxergava nada. Apenas a fumaça que vinha do motor de seu carro. Douglas sai pra fora e não sabe o que fazer. Àquela hora, naquela estrada, quem poderia lhe ajudar? Sentiu um calafrio, um medo, aquele temor foi tomando conta de seu corpo. Estava sozinho naquela estrada. Corre para dentro de seu carro e tenta ligar para alguém vir lhe socorrer. “Celular desgraçado”, diz Douglas. Numa raiva sem sentido ele arremessa o celular para fora do carro. O aparelho vira em cacos no asfalto. “Merda, e agora”?... Seu corpo está cansado... dá um suspiro...
“Nem tudo está perdido, meu filho”... Douglas tem um sobressalto! Pensa: “De onde vem essa voz rouca de mulher? Parece um fantasma!” Coração bate apressado e de repente ele sente que alguém tocou o seu ombro. Aos poucos ele se vira e enxerga uma senhora de aparência assustadora do lado de fora do carro. Douglas pede ajuda à mulher. “Acalme-se”, diz a velha, “estou aqui para lhe ajudar, me acompanhe”...
Num súbito, Douglas sai de seu carro e segue aquela senhora. Ele tenta conversar, mas ela não responde. “Pra onde está me levando? Onde a senhora mora?”... Nada. Douglas teme, pensa em voltar atrás. De repente, enxerga um velho casebre. A velha vai em direção a ele. Douglas entra e de pronto já sente um cheiro de perfume no ar. Um perfume bom... Uma paz... Douglas estava sentindo-se assim. Ah, nada melhor que uma sensação como essa após um dia estressante de trabalho!
A velha senta-se em uma cadeira e oferece uma maçã para ele. “Não, não estou com fome. Obrigado! A senhora tem um telefone para me emprestar? Deve ter percebido o que fiz com o meu...” Douglas é interrompido: “Pegue.” A mulher ficou séria. Douglas a contragosto, pegou aquela bonita maçã e deu-lhe uma mordida. Nisso, aquela senhora perguntou-lhe: “O que sente?” Douglas ficou desconfiado. Afinal, estava ali com uma mulher que nunca tinha visto em sua vida, numa estrada deserta, numa noite totalmente funesta. Ele ali, e aquela mulher lhe olhando. Pensou em dar no pé, mas voltou atrás. A velha continuou: “Não adianta querer fugir. Foi o destino que lhe trouxe aqui”.
Deu mais uma mordida na maçã e sentou. Seus olhos nos olhos da velha. Ela rindo e ele sério. “Sei que estás desconfiado. Mas de uma coisa tenha certeza. De hoje em diante sua vida vai mudar.” Douglas deu um sorriso. Na sua mente veio a lembrança de uma vez em que fora numa cartomante prever seu futuro. “Eu não acredito em previsões”. A velha apontou para a maçã em que estava comendo. “O futuro está em suas mãos.” Douglas, então, começou a morder a maçã. Sentia fome.
“Tem esposa e filho... Eles sentem muita falta de você...” Aquela velha tinha acertado. Ele realmente não estava tendo tempo para sua família e aquilo o incomodava. Sentia-se infeliz por dentro. Angústia, dor, lamento... Mordia aquela maçã, ficara nervoso com o que a velha estava dizendo. “Seu negócio vai mal. E a partir de hoje ficará pior. Muito pior...” Douglas arrepiara-se. Soltou a maçã sobre a mesa. “Eu não vim aqui para consultar meu futuro e sim para ver se a senhora podia me ajudar. Ao invés disso, me deixou mais aborrecido ainda”. Sentiu sono, suas pálpebras pesaram. Atontou. Pediu ajuda a velha, que permaneceu imóvel. Caiu sobre um velho sofá e adormeceu...
Canto de pássaros. Luz do sol batendo no rosto. Acordara-se. Num supetão levantou e se pôs a encontrar a velha. Nada. Saiu porta a fora e levou um susto. Estava ali o seu carro. “Como pôde vir parar aqui?” Seguiu até ele e bateu arranque. Normal, o carro funcionou. A alegria estampou-se em seu rosto de uma maneira, que até esqueceu-se daquela velha e de suas previsões.
Começou a sentir um cheiro ruim. Mofo. Olhou ao redor e seu veiculo estava que era puro pó. “Nossa, que sujeira. Nem tinha percebido que meu carro estava em estado tão deplorável.” Ao sair na estrada percebeu que estava tudo estranho. Placas de sinalização, carros de modelos diferentes. Tão diferentes que ele até ficou envergonhado de sair com aquele carro. Mas seguiu viagem. Queria logo encontrar sua esposa, seu filho... Abraçá-los e dizer-lhes que agora tudo irá mudar, que vai dedicar-se mais a eles.
Enxerga a cidade. Tudo diferente, está maior. Douglas não acredita no que vê. Afinal, deixa a sua família naquela pacata cidade e viaja todos os dias vinte quilômetros até a cidade próxima, que é maior e mais perigosa, para trabalhar com seu sócio. “O que está acontecendo?” Olha para um lado, olha para outro... Decide descer no barzinho que freqüenta com seus amigos. Não há mais bar. Caminha. Sua cabeça gira, o corpo treme. Pensa no que aconteceu na noite anterior. Coisas esquisitas. Agora está ali, em outro mundo. Como pode tudo ter mudado tão de repente de uma hora para outra?
Corre para o carro. Pisa fundo no acelerador. Quer encontrar sua família, quer tentar entender o que está acontecendo. Encosta em frente ao seu prédio, desce do carro e sai correndo. Só vê gente estranha, todo mundo fica olhando. Está desesperado. Chega a porta de seu apartamento e toca a campainha. Uma, duas, três vezes. Ninguém atende. “Saco!”
Um senhor de barba branca abre a porta. Douglas o empurra e entra. “Cadê minha família?”, diz ele. “O que é isso, rapaz? Vou chamar a polícia!” Douglas anda por todo o apartamento e não encontra nada. “Minha mulher, meu filho! Onde estão?” O velho está assustado, mas ao mesmo tempo sente pena daquele pobre maluco que entrou em sua casa. “Aqui não tem mulher e nem criança. Há algum tempo morava uma mulher aqui. Vendeu-me o apartamento e mudou-se de cidade. Seu marido havia desaparecido. Já estou há dez anos aqui.”
Dez anos? Marido desaparecido? Como? Douglas saiu do sério! Avançou no velho, deu-lhe um soco, pontapé. O velho pediu clemência, que não o matasse. Lembrou-se da velha. “O futuro está em suas mãos”. Olhou para o velho. Sentiu pena. “Não, você não é o culpado.” Pegou o telefone e ligou para sua empresa, talvez seu sócio lhe desse alguma informação. Gelou as mãos, quando descobriu que aquela empresa havia falido, que um sócio dela havia desaparecido e que o outro havia morrido. Isso há dez anos...
Saiu dali feito um leão atrás de sua presa. Queria encontrar aquela senhora. O que ela teria feito? Deu meia volta no carro e partiu. Uma fúria, um desatino. A sua alma dilacerava. “Ora, aquela velha fez eu perder dez anos de minha vida. Ela vai ter que me devolver tudo!” Esse tudo era sua preciosidade, eram seus entes. Avistou o casebre. “Vou matar essa velha”. Seus olhos estavam vermelhos, devido ao seu choro e sua fúria.
Desceu. Adentrou a casa e não tinha ninguém. Tudo estava como havia deixado. Olhou para aquela maçã. A ferrugem já aparecia, estava intragável. Mas ficou admirando-a. Lembrou-se da noite anterior em que a mordia com prazer. Um prazer que ele nunca havia sentido em toda sua vida. Nem sua própria esposa não lhe tinha dado tal prazer. Achava estranho. Mas queria outra. Queria mais uma, precisava daquele sabor. E aquele perfume... O perfume dentro daquele casebre era bom. Levantou-se da cadeira e tentava procurar o que causava tal cheiro. Rodeava a casa e o cheirinho bom cada vez mais perto. Deu de frente com uma bela bandeja. Ali haviam porções de maçãs iguais aquela. Todas exalando aquele cheiro bom.
“Não toque nelas...” Douglas pulou de susto. “A sua parte já foi. Deixe para o próximo”. Douglas não entendera. Lançou um olhar demoníaco sobre a velha. Queria estrangular aquele monstro. “Acalme-se. Sua porção foi pouca. Dez anos. Lembra-se quantas mordidas deu nessa maravilhosa maçã?” Então era isso... “A senhora me fez dar dez mordidas nesta merda de maçã e me tirou dez anos de vida?” A velha abriu um sorriso e balançou a cabeça afirmativamente. “Por que achas que ainda estou neste mundo? Por causa delas. Cada mordida que alguém dá numa de minhas maçãs, perde um ano de vida e me acrescenta outro.” Douglas perdera o controle. “Bruxa, desgraçada! Arruinou minha vida!” Douglas investiu sobre a velha. Socos, tapas... E a velha ria. Ria muito. Chegava chorar de tanto que ria. Parecia que estava gostando. Foi então que sua fúria foi tão grande... que... atirou a bandeja de maçãs na velha e...
Susto! Olhara para um lado e para outro. Tudo escuro, corpo suando em bicas. Estava dentro de seu carro. Que horas seriam? Acendeu a luz interna do veículo e o seu relógio marcava 00:30. “Meu Deus, que sonho absurdo. Ainda bem que acabou”. Mas, para sua surpresa, em cima do painel do carro havia uma maçã. Levara um grande susto. Aquela maçã não estava ali antes. Num golpe, pegou aquela maçã e jogou para fora do carro. O seu pânico era grande. “Preciso sair dessa estrada mal-assombrada”. Virou a chave e o automóvel, por sorte, funcionou. “Só fez aquilo para me aborrecer, maldito!” Tudo que queria era sair dali o mais rápido possível.
Pé fundo no acelerador, mãos tremulas, nem pensava direito... Foi quando perdeu o controle e saiu da pista. Capotou diversas vezes. O carro parou. O seu corpo doía. Sentia-se leve. Uma paz tremenda, igual a que sentiu no casebre da velha. Os pensamentos vieram. Estress, trabalho, finanças... “Você não tem visão de empreendedor! Desse jeito teremos que desmanchar a nossa sociedade!” Planos, projetos, índices, vendas, pessoas... “Você não tem tempo para sua família, desse jeito não vai dar! Nem alimentar-se direito você se alimenta! Tome esta maçã. Vá comendo!” Aquilo não saiu de sua mente. “Pegue esta maçã! Vá comendo!” Douglas mal podia respirar. “Então, foi meu amor quem me deu aquela maçã! Eu não a comi. Não dei bola para aquilo!” Era isso. Pois é, Douglas. Nem pra isso você tinha tempo... Parece que seu corpo não lhe pertencia mais. Sua vista foi ficando branca. Douglas morreu...
Enquanto isso, alguns quilômetros atrás, um carro estaciona. Dele desce um senhor. Precisa aliviar sua bexiga. O homem suspira de alívio. Olha para o lado e no brilho dos faróis enxerga uma suculenta maçã. Era a maçã desprezada. “Como alguém pode perder uma preciosidade como essa?” O homem juntou-a do chão e deu-lhe uma bela mordida...

FIM

Conto #5 - A Mente

Conto #5 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


A Mente


A estrada estava tranqüila. Não havia movimento para um feriado rumo ao litoral. Todos o aguardavam ansiosamente já que a reunião com investidores lhe deixara de serão até a noite.
As árvores corriam praticamente sincronizadas e o silêncio fúnebre ao seu redor fazia com que seu pé pisasse mais forte no acelerador. Enquanto observava as pastagens no seu entorno, se recordava das ações, cotações da bolsa, esposa, contas para pagar, filhos... “Calma. A estrada é bela , arborizada. Te deixa ansioso mas é pra te deixar calmo. Entendeu? Calmo.”
Enquanto contemplava o espetáculo orquestrado pelo Reino Animalia, lembrava de Marisa. Ela é linda, meiga, doce e ainda lhe dera um filho lindo: Felipe. Igual ao pai, com o gênio da mãe e a esperteza da sogra. Trá....trá trá... o carro tremeu, ficou difícil controlar mas foi possível jogá-lo no acostamento. “Droga, o pneu furou. Cadê o estepe reserva? Estava aí, onde está? Droga!”
Noite sombria, a orquestra da natureza já se preparava para o seu segundo ato. Não era nenhum Molière, mas sim alguma história macabra de Stephen King. Como Douglas iria sair desse dilema? Frio, neblina, o pneu furado, a falta de estepe; ou seja, a calma aparente lhe dava um medo.
Ainda bem que a sua frieza nos negócios, deixavam seu rosto praticamente sereno, exceto sua sombracelha direita levemente inclinada. Enquanto pensava em formas de sair desse problema, percebia que próximo ao acostamento, bem na frente de um linda mangueira havia um casebre de duas janelas. A casa era feita de barro e telhado de sapê. O casebre lembrava muito as casas das bruxas de histórias infantis, com a diferença que a frente da casa era bem limpa, não havia matagal e lá dentro parecia haver gente, já que a luz da casa refetia como uma noite de lua cheia no acostamento da estrada.
Antes de bater palmas uma velha já estava ao seu lado lhe oferecendo ajuda. “A velha não era bruxa, ouviu?” -retrucou o homem. A velha tinha cara de avó. Doce, educada e muito alegre. Convidou ele para entrar, se proteger do frio, tomar uma água e esperar alvorecer pois a orquestra noturna a essa hora se encaminhava para o último ato.
Entrou. Sentou-se numa velha poltrona que apesar da idade ficaria ótima como decoração em sua casa de praia. Bebeu água, tomou café, comeu biscoitos e ainda a bondosa velha lhe ofereceu uma linda maçã de sobremesa. Enquanto a prosa varava a madrugada, ela dizia que seu filho morava na capital e que apesar de não vê-lo há muitos anos, entendia os problemas que ele passava... Apesar de humilde a anciã demonstrava a sabedoria do velho Sun Tzu.
Enquanto terminava o último pedaço da suculenta e saborosa maçã, a senhora começou a perguntar coisas sobre a sua esposa, seu filho, seu emprego. Estranho foi quando a velha lhe perguntou sobre como ia o Tavares. O Tavares era seu sócio-rival na empresa e sempre fazia alguma objeção durante o trabalho. Como ela poderia saber dele? Será essa mulher uma vidente?
A velha então disse que fazia previsões. Sabia do passado e mostrava o futuro. Douglas não se sentindo confortável com a conversa se levantou para ir embora. Mas a boa velhinha lhe deu um sorriso tão angelical e um pudim tão saboroso que o jovem empresário se sentaria novamente. Entre um pudim e outro a senhora começava a lhe falar sobre sua vida e família.
A senhora lhe dissera que estava casado já se fazia 10 anos e que ele não era feliz. Sua vida era fantasiosa, que ele tinha que se separar dela. Até mesmo tirá-la da sua vida. Ela e o menino.
Como uma velha pode lhe dizer uma coisa dessas? “Deixa eu levantar , eu quero ir embora.”- Respondeu ele. “Calma! Tudo está se esclarecendo. Fique calmo.”
Douglas não se conformara com o que essa bruxa havia dito. Ele era feliz, o Felipe era lindo, a Marisa a mulher da sua vida. Como desfazer tudo isso? “Era uma família feliz. “Esses velhos são todos uns malucos. Isso que dá ser atencioso a esses velhos com Alzheimer”.
Levantou irritado. Pegou sua coisas, esbarrou na mesa de centro da humilde casa e cruzou a porta como uma flecha. A senhora argumentava: “_ Você perdeu dez anos de sua vida, você não é feliz. Esqueça eles. Entendeu?”
“_ Não. Não posso. Estou feliz com eles. É minha vida, é meu fardo.” Resignou-se.
“_ Não é seu fardo. Esqueça eles ouviu. Foram 10 anos perdidos. Calma , você não tem culpa. Você tem que viver e esquecer esses 10 anos passados.”
Como essa velha pode dizer isso? Perder os 10 anos mais felizes da vida dele? Decidiu ignorar a pobre senhora que partia atrás dele. Douglas correu. A velha seguia falando. Douglas apertou mais passo. A velha o deixou ir resignada...
Já estava de manhã, sol a pino. Procurou pelo carro quebrado e ele não estava lá. A estrada que estava na sua frente não era bela. A orquestra a essa hora, não dava o seu show. Roubaram o seu carro quebrado? Pensou em voltar para o casebre. Só que não havia casebre também. Estava ele de terno e somente com uma estrada na sua frente...
Acordou trêmulo e suado no divã. Um velho senhor careca que se assemelhava ao Tavares lhe dizia umas coisas:
_ Como foi a sua viagem?
_ Cadê a Marisa, o Felipe, meu emprego? Disse ele.
_ Calma.
Estava insano, querendo sair pela porta vestido de branco. Ele falava da velha, que ela dissera para esquecer a família e que não era fardo dele. “Que fardo?”-perguntou Douglas.
_ Culpa. Disse lhe Tavares. Você não tem culpa. Sua família se foi já fazem 10 anos.
_ Para onde? Cadê eles? A velha roubou a minha vida. Foi ela!
_Calma, não é isso. Eles se acidentaram de carro com você e infelizmente eles se foram... Mas não foi a sua culpa. Siga em frente e esqueça-os!
O jovem rapaz estava louco. Não aceitando o que ouvira. Sua família estava morta? Ele estava 10 anos casado e feliz. Como pode? “Não pode ser verdade isso”. No instante em que ainda questionava, entrava dois enfermeiros para segurá-lo e injetar mais uma dose de tranqüilizante.
O doutor explicava para a mãe de Douglas. “Ele teve uma grande melhora”. A Hipnose Regressiva tem surtido efeitos. Pelo menos agora ele sabe que a família dele morreu.
_ Graças a Deus. Meu filho perdeu 10 anos de vida nesse hospital, doutor Tavares. Há perspectiva de melhora? Perguntou a mãe aflita.
_Sem dúvida. Ele já mistura a realidade com o seu mundo idealizado. Isso é bom sinal. Breve poderemos narrar uma estrada bonita com um caminho totalmente novo. Assim ele se livra definitivamente da culpa. Respondeu Tavares.
Enquanto terminavam de aplicar a dose ainda atordoado pela revelação, viu a sua mãe chorando na sua frente. Se lembrava de quando era criança. Observava uma nova estrada. Sua mente se embaralhava... Voltava novamente e lembrava que sua mãe se chamava Narcisa... Escureceu de novo a vista...
Antes de entrar em sono profundo olhou para a sua mãe e disse:
_É ela Tavares, a velha que me deu a maçã e mandou esquecer a minha família. Tira ela daqui! Sai daqui sua bruxa! Ela roubou a minha vida! Tira ela daqui Tavares! Bruxa! Sai Bruxa!
E assim sua mãe saiu cabisbaixa, e com os olhos cheios de água, antes de o jovem apagar totalmente.
“Você ta calmo. A estrada é bonita. O carro desliza sobre a paisagem..."

FIM

Conto #6 - Apple Trip

Conto #6 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


Apple Trip


Maldito carro! Viro a chave na ignição, novamente. Tento uma vez, duas – acho mesmo que já perdi a conta! - e o motor, sem perceber meu ódio crescente, sequer dá sinal de vida. Perdido ali, naquela auto-estrada no meio do nada, rodeado por quilômetros de árvores gigantescas, apoio minha cabeça no volante, desanimado. Parece, até, que já ouço os comentários. Eu não disse? Sabia que Douglas se atrasaria. Uma reunião tão importante e ele nem dá satisfação! Ele não tem mesmo o talento do pai, tão necessário para levar essa empresa adiante... Sei que estou rodeado de víboras. O mundo empresarial não é nenhum jardim de infância e eu bem sabia disso quando resolvi fazer parte dele. Mas ser traído, assim, por um carro recém saído da concessionária é o cúmulo! E sei que eles se aproveitarão disso...
Por um momento, extremamente breve, pensei que o motor tivesse funcionado. Doce ilusão! Deve ter sido o vento, movimentando um pouco dessa paisagem melancólica – uma reta enorme, esquecida no mundo, rasgando a mata, em que não se vê o ponto de saída, tampouco o de chegada. Pelas minguadas réstias de luz que, heroicamente, atravessam os galhos, percebo o sol a pino e tento reorganizar minhas idéias.
A reunião com o “staff” da filial fora marcada por mim. Os índices de crescimento desaceleraram e achei, por bem, que era hora de intervir, para que as coisas voltassem ao normal, dentro do padrão esperado. No último momento, por algum pressentimento bobo, desses que a gente tem e não entende, resolvi desistir do vôo e, como já havia feito uma programação com folga, decidi viajar de carro, sozinho, longe do restante da diretoria, que seguiu viagem no avião fretado. Assim, teria tempo suficiente para traçar minha estratégia para vencer as resistências que, nos últimos tempos, começaram a contaminar o ambiente das empresas do grupo.
Acordei hoje, de bom humor. Era bem cedinho quando saí do hotel e coloquei o carro novamente na estrada. Era o segundo dia de viagem e, inconscientemente, na maior parte dela, meu pé ficara cravado, bem fundo, no acelerador. Se tudo corresse bem – e eu não admitia outra hipótese! – chegaria lá na hora marcada, com tempo, ainda, para um cafezinho...
Mas as coisas não se deram com haviam sido previstas. Depois do último posto de abastecimento, alguns – muitos! - quilômetros atrás, o motor começou a ratear, não querendo responder como, até então, havia feito. E quanto mais ele engasgava, mais eu insistia em provocá-lo, pisando repetidas vezes no acelerador. Vai, desgraçado! Pisava com raiva. Muita raiva. Nem pense em parar aqui, sua lata velha! De novo. Mando você para o ferro-velho e faço questão de vê-lo triturado, aos poucos, lentamente... E de novo. E quanto mais nervoso ficava, e quanto mais insistia, menos força o carro demonstrava.
Até que ele, de repente, deu um último e prolongado suspiro, desses que duram eternidades, e parou ali mesmo, naquele fim de mundo.
Não é justo que isso esteja acontecendo comigo! Sempre prezei a máxima de que “tempo é dinheiro” e sempre – sempre! – o fiz trabalhar para mim. Hora marcada é lei e regra é regra, não se quebra por nada. Quando alguém se atrasava, dentro dos horários que eu estabelecia, rapidamente era desqualificado e muitos funcionários, muitos mesmo, foram despedidos por causa disso. Sempre fui inflexível quando o assunto era o tempo... Mas, patrão, eu não tive culpa, o trânsito estava congestionado. Não tem desculpa. Minha mulher entrou em trabalho de parto e eu a levei para o hospital... Não importa. Não há quem me faça ver de forma diferente.
E agora era eu quem estava atrasado para o horário que eu mesmo havia marcado... Que ironia! Não conseguia acreditar que estava passando por isso e, sem pensar, dava-me, reiteradamente, tapas no rosto, punindo-me por não ter permanecido junto ao grupo, por ter dado ouvidos àquela intuição que, diga-se de passagem, mostrou-se - pela primeira vez! - equivocada.
Fechei os olhos, segurei a chave na ignição enquanto, mentalmente, pedia ajuda para alguma entidade metafísica, para que ela se compadecesse do meu infortúnio. Olhei para a pequena medalhinha em forma de coração presa no retrovisor, presente dado por alguma amante sem nome que, não sei bem por qual motivo, decidi preservar. Fiz uma última e desesperada tentativa.
Nem sinal.
Saí do carro, batendo a porta, violentamente. Agarrei meu aparelho celular e, sem nenhuma surpresa, percebi que estava completamente sem serviço. Também pudera! Naquele fim de mundo era difícil imaginar que houvessem antenas espalhadas por aquela imensidão desolada. Droga! Para que serve a tecnologia se ela não funciona quando a gente precisa? Andei de um lado para o outro, me contorcendo atrás de qualquer coisa que ressuscitasse meu telefone e o conectasse de volta à civilização. Mas, por mais que tentasse, tal qual meu carro, ele permanecia apenas como a lembrança daquilo que foi um dia...
Num acesso incontrolável, vi-me esbofeteando a lataria e, aos poucos, o vermelho impecável e reluzente deu lugar a uma tonalidade fosca e embaçada. Após um tempo, exausto, desabei. O que faço agora? Pensava na reunião e no escárnio das pessoas, ao constatar minha ausência. Que moral ele tem para nos repreender sobre atrasos ou coisa parecida? Pois é, ele ainda não apareceu. Eu não disse? Pobre Douglas, não tem a mínima competência para ser o presidente das empresas! Eu tinha certeza de que ele não apareceria...Quantas pessoas ele não mandou embora por muito menos? É verdade. É verdade e não posso negar. Mandei muitos empregados para o olho da rua por atrasos ínfimos, não dando qualquer chance de defesa. Fiz disso uma lei maior e, sem querer, eu a estava violando. Sentia-me estuprador de meus próprios conceitos...
De repente, observo um movimento na estrada, algo além das folhas secas sendo levadas pelo vento insistente. Esfrego meus olhos, tentando desvencilhar-me da poeira que me impede de ver com clareza. Aos poucos, a pequena mancha vai tomando forma e o que antes era um vulto transforma-se numa pessoa. Quando, finalmente, compreendo o que se passa, percebo uma velha, carcomida pelo tempo, envolta em panos rotos, tão envelhecidos quanto ela, caminhando lentamente na minha direção.
- Posso lhe ajudar em algo, meu filho? – perguntou, com a voz trêmula, denotando idade avançada.
Por alguns instantes, permaneci imóvel, ainda sob o impacto da presença de alguém ali, no meio do nada. Aos poucos, ia me refazendo do susto, tentando, ao mesmo tempo, encontrar palavras para dizer-lhe algo, interrompendo aquele silêncio que começava a incomodar.
- Por acaso a senhora teria um telefone que eu pudesse usar? Meu carro... Esse desgraçado parou de repente e...
- Tenho sim. Quer vir comigo?
Pensei: ir para onde? Por maior boa vontade que tivesse, ainda que acreditasse em Papai Noel ou bicho papão, era difícil conceber que alguém pudesse morar ali, tão distante de qualquer cidade, esquecida entre árvores e poeira... No entanto, a figura peculiar que se apresentava à minha frente era tão improvável, tão absolutamente improvável, que aquela impossibilidade virtual transformava-se, subitamente, numa possibilidade factual. Não pude, então, contestar. Estava além das minhas forças.
- Claro... – assenti.
Entramos pela mata fechada, por um caminho que não se percebe. Eu ia acompanhando os passos da velha, desviando dos inúmeros obstáculos, sob os olhares de uma coruja extemporânea – afinal, ainda não era noite e, pelo que me constava, era somente aí que elas apareciam. Depois de algum tempo - e alguns múltiplos arranhões! - abriu-se uma pequena clareira e vi-me diante de um pequeno casebre. Ela colocou-se próximo à porta, abrindo-a e convidando-me para entrar.
Por um momento, titubeei, como se não estivesse bem certo se era o melhor a ser feito. Porém, vi que não havia alternativa que pudesse me colocar para fora daquele lugar senão conseguir falar ao telefone – embora, pelas aparências, me fosse difícil acreditar que ali existisse um aparelho. E mais, um aparelho funcionando.
- Sinta-se em casa! Ela é simples, mas tem espaço para abrigar todo mundo...
- Gostaria apenas de telefonar, se possível. Não quero tomar muito do seu tempo.
- Tempo? Mas não é você quem acha que tempo é dinheiro?
Fiquei imóvel e em silêncio. Como poderia aquela velha, curvada pelo peso da idade, saber algo de mim? Rapidamente, tentava processar os dados em meu cérebro cansado, tão acostumado estava em transformar a vida em números e os fatos em palavras, matematicamente alinhadas nas folhas dos relatórios e balancetes das empresas. Não havia possibilidade, a menor que fosse, de que ela pudesse saber sobre mim ou sobre minha vida. Se eu achava que tempo é dinheiro isso é uma coisa só minha e de mais ninguém.
- Como assim? O que quer dizer com isso? – perguntei, demonstrando uma ponta de irritação.
- Sente-se, meu jovem. Não tenha pressa... - apanhou algo encoberto por um pano que estava sobre a mesa – Tenho, ainda, algo a lhe dizer...
Ela retirou o pano, revelando um fruto. Uma maçã, provavelmente o mais belo exemplar que já havia visto! Era grande, muito grande... Tinha a casca, de um vermelho intenso, sem qualquer imperfeição e gotículas brilhantes brotavam em sua superfície, quase como se fosse o frescor da pele de uma mulher, imantada, transpirando desejo por todos os poros. Minha boca, num ato reflexo, encheu-se d´água, querendo sentir o gosto daquele pecado...
Ela estendeu a mão, oferecendo-me. Agarrei a maçã e, sem pensar no que fazia, delicadamente, levei-a, de olhos fechados, até bem próximo de meu rosto. Com todos os sentidos, um após o outro, experimentei-a... Uma sensação indescritível foi tomando conta de mim, um formigamento em todo o corpo, um calor extremado...
A velha, então, dirigiu-se, lentamente, até um pequeno e empoeirado móvel de madeira e, do fundo dele, retirou o que parecia ser uma bola de cristal e a trouxe até próximo de mim, depositando-a sobre a mesa. Mas... Como? Tentei argumentar. Porém, encontrava-me em estado de torpor, não só pela experiência inusitada que havia tido com aquele fruto escarlate, mas, também, hipnotizado pelo brilho que vinha daquele estranho objeto.
- Não tente entender, pois muitas coisas estão além de qualquer entendimento! – continuou, com um pequeno sorriso no canto da boca enrugada – Apenas ouça as previsões que tenho para sua vida e saiba tomar a decisão correta...
Sentei-me à mesa. Ou melhor, meu corpo, aparentemente liquefeito, simplesmente, se desmontou.. A cadeira parecia atrair-me o tempo inteiro, como se quisesse tornar-me parte dela.
A velha começou a falar sobre mim como se eu próprio o fizesse, desenterrando inúmeras lembranças há muito esquecidas, remexendo nas folhas soltas do meu pensamento, dissecando minha vida como se fosse um cadáver ainda quente numa tábua de anatomia. Toda a minha história, página por página... Era impossível! Mas estava acontecendo, ali, agora. Meus desastrados casos de amor, minha inabilidade para captar amigos... Ela ia, calmamente, dizendo tudo e, ao mesmo tempo, criando cadeias, como elos de corrente unidos, projetados para o futuro. Um acontecimento interferindo em outro, e em outro, e em outro...
De repente, ela se calou por alguns momentos e permaneceu imóvel, com as mãos sobre a bola de cristal, acariciando-a pacientemente. Eu tentava, de todas as formas, digerir aquilo que se passava diante de mim, quando aquela cantiga modorrenta sobre minha vida reiniciou. Falava, agora, sobre arrogância e tirania, das vidas que destruí, das inimizades que cultivei e no quanto isso interferirá mais adiante. Meu Deus, como podia suportar tamanha ousadia? Com quem aquela velha encarquilhada pensava estar falando? Dizer aquilo tudo que dizia, agora, de mim, impunemente... Como era possível?
- Acho que basta, não? – interrompi as previsões, levantando-me abruptamente.
- O que lhe incomoda? A verdade...?
- Não tenho mais tempo a perder aqui... Queria apenas utilizar o telefone e não ficar ouvindo esse monte de baboseiras a meu respeito!
- Tenha calma, ainda não acabou...
- Claro que acabou! Não preciso ficar aqui sendo insultado por alguém que nem conheço! – meu tom de voz era alto e áspero. Caminhei, resoluto, em direção à porta.
- Você é quem decide sobre seu futuro... - ela ergueu as mãos e, de olhos fechados, entoou algum cântico indecifrável - Você teve a chance de mudar e entender seus erros mas, pelo jeito, não aproveitou. Continua achando que tempo é dinheiro e que você está sempre acima de tudo, não? Pois bem... Terá que aprender de novo...
Já estava ficando de saco cheio de tudo aqui! Ainda ia dizer algo, mas desisti. Agarrei, firmemente, a maçaneta.
Um flash.
Um relâmpago.
Inexplicavelmente, percebi um intenso facho de luz que saía de mim, atravessando a bola de cristal para, finalmente, atingir a velha em cheio, no coração. Ela se contorcia envolta num halo incandescente que a transformava numa figura disforme e volátil. Enquanto suas histéricas gargalhadas devassavam o espaço, tive a impressão de que as rugas de seu rosto iam, aos poucos, desaparecendo. Tempo não é dinheiro... Entre um estrondo e outro, pude ouvi-la, com nitidez. Tempo é vida... Tempo é vida... Assustado, em pânico, saí do casebre, que parecia transformar-se numa supernova errante.
Cambaleante, abri caminho pela mata – estranhamente muito mais alta do que quando passei por ali algum tempo antes. Tentava encontrar a estrada, encontrar meu carro, algo que me lembrasse os motivos que me levaram até aquela situação inusitada. Sentia-me cansado, como se carregasse o mundo nos ombros. Passei as mãos pelo meu rosto, para retirar o suor caudaloso que escorria, embaçando-me a visão e percebi, no tato, minha pele flácida. Imediatamente, levei as mãos à cabeça e, horrorizado, percebi que elas arrancaram, sem qualquer dificuldade, tufos de cabelo branco. Meus Deus! O que está acontecendo? O que, diabos, está acontecendo?
Alcancei a estrada. O matagal cobria todo o acostamento, avançando sobre o asfalto. Cadê meu carro? Fui caminhando, completamente perdido. Todos os lugares daquela reta eram semelhantes. Mas eu tenho certeza de que não estava assim, tão distante. Mais alguns passos. De repente, vejo algo mais ao longe. Um carro! Com o resto das forças que sobraram, aperto o passo. Percebo, porém, que não poderia ser o meu... Não, definitivamente não poderia ser ele. Uma lataria apodrecida, coberta de limo, sem motor, volante ou banco. Chego até ele. Não...! Dou um grito, que ecoa pelo vazio. Estarrecido, vejo, através do vidro quebrado, a medalhinha – a mesma para a qual havia recorrido! - presa no retrovisor.
Praticamente, arranco a porta fora. Entro naquilo que, algum dia, foi um veículo, e procuro mirar-me no espelho. Com alguma dificuldade, utilizando-me da manga da camisa – ou, pelo menos, o que antes era a manga da camisa e agora parecia um trapo velho e amarelado – consigo limpá-lo. Olho-me. Não me reconheço. Devo ter, pelo menos, dez anos a mais...
De repente, sou invadido pela lembrança das palavras daquela velha em chamas... Tempo não é dinheiro. Tempo é vida... A conclusão é óbvia. Ela havia me roubado o tempo. Ela havia me roubado a vida...
Como se fosse um recém-nascido, ainda preso à placenta, mexo meus braços, estico minhas pernas, emito um doloroso choro de vida e, sem entender, saio do carro, sabendo que terei que recomeçar. Caminho pela estrada, ainda sem direção. Sei, apenas, que será uma longa caminhada.