02 maio 2006

Conto #2 - A Cobrança

Conto #2 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


A Cobrança


Quando o pneu estourou, Douglas apenas ouviu um barulho surdo. No instante seguinte, ele não conseguia controlar o carro. Ainda teve tempo de gritar um palavrão em seu pensamento – Douglas nunca conseguiu falar palavrões em voz alta – antes de sair da estrada e bater numa árvore.
Seu primeiro pensamento foi: “Droga, vou perder a reunião em Campinas amanhã!” Estremeceu. Tinha que agradecer a Deus por estar vivo. O único problema é que Douglas não acreditava em Deus.
Lá fora, a chuva continuava forte, castigando o limpador de pára-brisa, que ia de um lado para outro rápido, mas sem conseguir revelar nada do que se passava para lá do vidro. Douglas já tinha contado: o limpador de pára brisa ia e voltava duas vezes a cada segundo. Tentou contabilizar para si mesmo quantas vezes o pára brisa teria varrido o vidro desde que a chuva começou. Olhou no relógio. Há exatos 12 minutos e 47 segundos os primeiros pingos tinham começado a cair. Isso significava… 1534 voltas do limpador de pára-brisa. Desde a infância, Douglas tinha essa obsessão de ficar medindo o tempo por outras unidades que não os segundos e minutos. Dava a impressão de poder esticar ou comprimir o tempo, dependendo do que ele usava para medir. Os seus próprios passos, as batidas de seu coração, os arrulhos do pombo de Ana Lúcia…
Ana Lúcia. Era a segunda vez que Douglas pensava nela hoje. A primeira foi quando, procurando uma lâmina nova para seu aparelho de barbear, tinha encontrado uma de suas calcinhas no fundo da gaveta do banheiro. Lembrou-se dela, de como eles transavam na hora do banho, do gosto de sua boca impregnado da água do chuveiro…
Não podia durar. Claro que não podia durar. Eles eram muito diferentes. Ana Lúcia tinha loucura por animais, de qualquer tipo. Douglas não queria ter nada que dependesse dele, como uma criança, ou um animal. Tinha em mente que queria ter seu primeiro milhão de dólares antes dos 25 anos de idade. Qualquer coisa que se pusesse entre ele e sua meta era encarado como um obstáculo que tinha que ser ultrapassado.
Obstáculo. Problema.
Foram estas as duas palavras que Douglas usou quando Ana Lúcia contou a ele que estava grávida. Ela chorou, brigou, gritou… Não conseguia encarar o fato de Douglas não ver as coisas da mesma maneira que ela. Para ele, um filho, àquela altura da carreira, significava renunciar a muita coisa. A tudo o que ele tinha sonhado. O reconhecimento, a fama, o dinheiro… A última frase da discussão foi sua: “Não tenho tempo para um filho agora”. A frase ainda ecoava na sua cabeça, e Douglas não entendia por quê.
Pensando bem, ele entendia sim. Douglas se lembrou da frase quando um amigo comum lhe deu a notícia: aquele carro que tinha espatifado a traseira de vários veículos estacionados, para depois capotar, aquele carro que tinha sido notícia em todos os jornais, era de Ana Lúcia.
Douglas foi visitá-la. Levou um buquê de flores. Sentia-se quase alegre, e por conseguinte culpado. Mas não podia deixar de ter a sensação de que agora tudo se resolveria entre eles; Douglas e Ana Lúcia tinham muito em comum, e ele ainda se sentia ligado a ela. Agora que o “acidente de percurso” já fora tirado do caminho de ambos, nada mais justo que continuarem sua jornada rumo ao sucesso juntos.
Mas Douglas não pôde dizer nada disso a ela. Ana Lúcia começou a gritar ao vê-lo, sem ouvir nada do que ele tinha a dizer. Por fim Douglas desistiu, e foi embora muito assustado. Durante muito tempo, Douglas ainda se lembrava dos gritos de Ana Lúcia; chegava a sonhar com eles. Mas logo chegou à mesma conclusão de sempre em todos os aspectos de sua vida: não tinha tempo para remorsos, precisava continuar. E quando acordava de noite com os gritos de Ana Lúcia, tomava dois comprimidos de dormir com vinho e não pensava em mais nada.
E por falar nisso, Douglas pensou, não tinha tempo para ficar parado, naquele carro, sob a chuva, pensando em coisas que já aconteceram há dez anos atrás. Reparou que chovia menos agora, e que à direita da árvore em que tinha batido, havia um casebre. Não sabia como a chuva não o tinha jogado ao chão; era um casebre feito de lata e madeira, sozinho em meio ao descampado. Douglas podia jurar que não o tinha visto antes, mas não podia ter certeza, não na condição em que se encontrava, depois de um acidente de estrada ao qual miraculosamente havia sobrevivido. Usando o paletó como protetor para a cabeça e a pasta de couro como um escudo contra a chuva, atravessou o espaço que separava seu carro do casebre.
Bateu na porta uma, duas, três vezes. A cada vez suas batidas ficavam mais desesperadas, já que a chuva molhava seu terno novo e podia estragar o couro da pasta. Ao final da terceira batida, a porta se abriu. Douglas viu uma velhinha embrulhada em roupas de frio surradas, o nariz vermelho se destacando do rosto emoldurado pelo lenço preso com grampos.
- Meu filho, pelo amor de Deus, entre! Olhe só como você está!
Douglas entrou no casebre, que parecia bem maior do que do lado de fora. Deve ser impressão, pensou ele. A velha insistia para que ele tirasse o paletó, para não pegar um resfriado.
- Isso faz muito mal, meu filho, muito mal. Vá sentando, vou fazer um café. Bem quentinho, bem quentinho!
Douglas se sentou num dos banquinhos de madeira, todos eles diferentes, colocados em torno de uma mesa com os lados quebrados. Além destes móveis, só havia uma cama com um crucifixo por cima, um fogãozinho a gás, um lampião, e duas caixas de madeira empilhadas, que serviam para guardar as panelas. Em cima da segunda caixa, além de um vaso com algumas flores, estava um prato com cinco maçãs. Douglas não tinha jantado; disse a si mesmo que comeria alguma coisa no hotel de Campinas. Por isso a visão das maçãs chamou sua atenção: elas pareciam tão gostosas, tão vermelhas…
- Tá aqui o café… Toma logo, pra esquentar o peito, vai!
Douglas não ousava falar. Tinha medo de trair seu asco pelo lugar. O medo mais secreto de Douglas sempre tinha sido se transformar numa dessas pessoas que vivem nas ruas, que carregam seus pertences para lá e para cá num saco plástico, que não têm controle sobre sua própria vida. Não queria dar a impressão que estava reparando na pobreza do casebre; por isso, manteve seus olhos nas maçãs. Por isso e pelo fato de ter começado a sentir o cheiro que elas exalavam.
- Quer uma maçã?
Douglas se assustou. Tinha tomado apenas dois goles do café, e não esperava que a velhinha adivinhasse seus pensamentos. Mas por outro lado, ela não precisava adivinhar nada; ele é que não tirava os olhos das maçãs.
- Acho que vou aceitar sim… Eu posso pagar, não se preocupe.
- Ah, pra quê? Eu não como maçã, trouxe aqui pra quando a minha neta vem me visitar. Ela gosta.
- A senhora tem uma família? Por que não mora com eles?
- Ah, meu filho, a gente quando fica velha não aguenta mais ficar perto dos outro. Prefiro ficar aqui no meu cantinho, sossegada! – e riu, mostrando apenas os dentes da frente, bastante encavalados. Alcançou o prato e ofereceu as maçãs a Douglas. Douglas pegou uma delas, deu uma mordida, e foi invadido pela mesma sensação da infância, ao descobrir a textura da primeira maçã sob seus dentes. Há quanto tempo não parava para saborear uma comida, uma bebida, uma fruta como aquela… Em menos de um minuto tinha comido toda a maçã, e pegou outra.
Só ao terminar reparou que a velhinha estava sentada à sua frente, segurando um baralho de cartas grandes.
- Quer que eu leia a sua sorte?
- Desculpe, não tenho temp... – já ia dizer Douglas, e percebeu que tinha muito tempo, enquanto ninguém soubesse que ele estava ali. Por isso buscou logo o celular no bolso. Fora de área.
- Não é possível… A gente paga uma fortuna para ter um celular, para poder estar sempre em contato com o mundo, e o celular não funciona.
- Eu nunca tive isso não senhor.
- Pois não lhe faz falta, acredite… Não funcionam mesmo!
A velhinha se juntou a sua gargalhada. Mas continuava com o baralho nas mãos. Douglas ficou sem jeito – a velhinha já tinha feito muito por ele – e deixou que ela lesse a sua sorte.
- Corte o baralho, seu moço. E depois tira cinco carta e põe em cruz, com uma no meio.
Depois que Douglas fez o que ela pediu, a velhinha virou todas as cartass.
- E então?
- O senhor tem filho, moço?
- Eu? Não, claro que não. Por quê?
- Essa carta aqui. O Louco. Quando vem essa carta, geralmente é um filho da pessoa.
- Não pode ser.
- É bom que não seja. Porque aqui o senhor tem o Julgamento.
- E isso quer dizer… o quê? Que um louco vai me julgar?
- Não. Que o seu filho quer justiça.
Douglas ficou sem palavras. Quando falou, tentou usar um tom quase professoral, como se falasse com uma criança de 3 anos de idade.
- Mas eu já lhe disse… Eu não tenho filhos.
- Já teve perto de ter um?
- Já.
- Sabia. Filho malquisto, moço, é uma coisa de doido. Quando vai pro outro lado, quer voltar. Ele fica acompanhando a infância dos outro menino, pra ver o que perdeu.
- Olha só… Eu acho que não foi uma boa idéia. Vamos parar…
- Logo depois tem o Carro. A carta que vai sempre pra frente, sem parar, sem olhar pra trás. O senhor dá valor pro tempo.
- Claro que sim. Tempo é dinheiro.
- Falou tudo. Depois vem a Roda da Fortuna. A sorte. O senhor veio parar aqui por quê?
- Escute, dona, eu não estou gostando muito dessa conversa.
- … e no final, o mágico.
- A senhora quer dizer que eu vim parar aqui por acaso, e encontrei um mágico? Que coisa mais estúpida! Eu só encontrei a senhora!
Pela primeira vez, Douglas viu o rosto da velha se alterar. A expressão bondosa deu origem a linhas e rugas que se encontravam enquanto ela falava. Os olhos, encovados, pareciam ter desaparecido. Era quase como uma máscara falando sozinha.
- Não. Eu não sou mágico, não, seu moço. Eu só vim cobrar. O senhor tinha uma dívida com alguém, e eu vim cobrar.
- Alguém quem? Que história é essa?
- Já tá feito, moço.
- O que é que tá feito?
- A justiça, moço. O senhor devia. O senhor pagou.
- Paguei o quê? Ficou louca? Quer saber do que mais, eu vou embora daqui.
- Pode ir, moço. A chuva já parou.
Só então Douglas percebeu que o barulho insistente da chuva não existia mais, há muito tempo. Pegou rápido suas coisas, deixou uma nota de dez reais na mesa – pelas maçãs, que estavam realmente muito boas – e saiu.
Passando pela porta, ele sentiu tudo.
Sentiu-se de novo criança, nos braços de Ana Lúcia, sentindo o leite quente jorrando do seio de Ana Lúcia para sua boca, uma sensação boa, tão boa quanto a primeira bala, o primeiro chocolate, os primeiros passos – ai, mamãe, caiu, e Ana Lúcia vinha pegá-lo, e agora brincava por entre outras crianças, descendo pelo escorregador, e agora sentia o toque de sua mãe dando-lhe banho, e o suave aconchego de sua cama de noite, sem papai, sem ninguém para dividir mamãe, e pulando, e brincando, e carrinho, e polícia, e bandido, e desenho animado, pernalonga, donald, papaléguas, coiote, bum!, e banana com aveia, e gangorra vendo o chão andar pra cima e pra baixo, e subindo em árvore, e soltando pipa, e beijo no cantinho do colégio, e futebol, e gol!, e então saiu do casebre.
Já era dia. O sol brilhava. Seu carro não estava mais lá. Aliás, não era a única coisa que estava faltando.
O casebre também não estava mais lá.
Andou muito na estrada, que lhe parecia maior. Não conhecia mais as curvas e retas; achava diferentes e familiares certas paisagens. Entrou num restaurante de posto de beira de estrada, que ele nunca tinha visto antes. As pessoas vestiam roupas estranhas, mas não pareciam se importar com isso. Aliás, as pessoas é que pareciam reparar em Douglas. Aparelhos que não conhecia atravancavam os cantos do posto; ele tentou pedir uma cerveja, mas não tinha da sua preferida. Por fim, cansado, Douglas entrou no banheiro para se lavar.
Olhou no espelho e não se reconheceu. Estava mais velho, tinha o cabelo ainda mais ralo, os olhos mais cansados – teve que chegar mais perto para se ver perfeitamente. Parecia mais velho.
Dez anos mais velho.
E então se lembrou do que a velha disse, há algum tempo (quanto tempo mesmo?)
Vim cobrar uma dívida.
Douglas entendeu o que é que teve que pagar.
Encostou sua cabeça no espelho, pela primeira vez despreocupado, pela primeira vez sem pensar em correr para esticar os minutos. Deixou-se inundar pela paz branca e silenciosa do banheiro, sentiu o cheiro limpo e asséptico dos detergentes. Sentiu-se leve. Algum tempo depois, Douglas saiu, marcando com os saltos dos sapatos o tempo que o separava do resto de sua vida.

Um comentário:

LEONARDO DE MORAES disse...
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