01 maio 2006

Conto #6 - Apple Trip

Conto #6 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


Apple Trip


Maldito carro! Viro a chave na ignição, novamente. Tento uma vez, duas – acho mesmo que já perdi a conta! - e o motor, sem perceber meu ódio crescente, sequer dá sinal de vida. Perdido ali, naquela auto-estrada no meio do nada, rodeado por quilômetros de árvores gigantescas, apoio minha cabeça no volante, desanimado. Parece, até, que já ouço os comentários. Eu não disse? Sabia que Douglas se atrasaria. Uma reunião tão importante e ele nem dá satisfação! Ele não tem mesmo o talento do pai, tão necessário para levar essa empresa adiante... Sei que estou rodeado de víboras. O mundo empresarial não é nenhum jardim de infância e eu bem sabia disso quando resolvi fazer parte dele. Mas ser traído, assim, por um carro recém saído da concessionária é o cúmulo! E sei que eles se aproveitarão disso...
Por um momento, extremamente breve, pensei que o motor tivesse funcionado. Doce ilusão! Deve ter sido o vento, movimentando um pouco dessa paisagem melancólica – uma reta enorme, esquecida no mundo, rasgando a mata, em que não se vê o ponto de saída, tampouco o de chegada. Pelas minguadas réstias de luz que, heroicamente, atravessam os galhos, percebo o sol a pino e tento reorganizar minhas idéias.
A reunião com o “staff” da filial fora marcada por mim. Os índices de crescimento desaceleraram e achei, por bem, que era hora de intervir, para que as coisas voltassem ao normal, dentro do padrão esperado. No último momento, por algum pressentimento bobo, desses que a gente tem e não entende, resolvi desistir do vôo e, como já havia feito uma programação com folga, decidi viajar de carro, sozinho, longe do restante da diretoria, que seguiu viagem no avião fretado. Assim, teria tempo suficiente para traçar minha estratégia para vencer as resistências que, nos últimos tempos, começaram a contaminar o ambiente das empresas do grupo.
Acordei hoje, de bom humor. Era bem cedinho quando saí do hotel e coloquei o carro novamente na estrada. Era o segundo dia de viagem e, inconscientemente, na maior parte dela, meu pé ficara cravado, bem fundo, no acelerador. Se tudo corresse bem – e eu não admitia outra hipótese! – chegaria lá na hora marcada, com tempo, ainda, para um cafezinho...
Mas as coisas não se deram com haviam sido previstas. Depois do último posto de abastecimento, alguns – muitos! - quilômetros atrás, o motor começou a ratear, não querendo responder como, até então, havia feito. E quanto mais ele engasgava, mais eu insistia em provocá-lo, pisando repetidas vezes no acelerador. Vai, desgraçado! Pisava com raiva. Muita raiva. Nem pense em parar aqui, sua lata velha! De novo. Mando você para o ferro-velho e faço questão de vê-lo triturado, aos poucos, lentamente... E de novo. E quanto mais nervoso ficava, e quanto mais insistia, menos força o carro demonstrava.
Até que ele, de repente, deu um último e prolongado suspiro, desses que duram eternidades, e parou ali mesmo, naquele fim de mundo.
Não é justo que isso esteja acontecendo comigo! Sempre prezei a máxima de que “tempo é dinheiro” e sempre – sempre! – o fiz trabalhar para mim. Hora marcada é lei e regra é regra, não se quebra por nada. Quando alguém se atrasava, dentro dos horários que eu estabelecia, rapidamente era desqualificado e muitos funcionários, muitos mesmo, foram despedidos por causa disso. Sempre fui inflexível quando o assunto era o tempo... Mas, patrão, eu não tive culpa, o trânsito estava congestionado. Não tem desculpa. Minha mulher entrou em trabalho de parto e eu a levei para o hospital... Não importa. Não há quem me faça ver de forma diferente.
E agora era eu quem estava atrasado para o horário que eu mesmo havia marcado... Que ironia! Não conseguia acreditar que estava passando por isso e, sem pensar, dava-me, reiteradamente, tapas no rosto, punindo-me por não ter permanecido junto ao grupo, por ter dado ouvidos àquela intuição que, diga-se de passagem, mostrou-se - pela primeira vez! - equivocada.
Fechei os olhos, segurei a chave na ignição enquanto, mentalmente, pedia ajuda para alguma entidade metafísica, para que ela se compadecesse do meu infortúnio. Olhei para a pequena medalhinha em forma de coração presa no retrovisor, presente dado por alguma amante sem nome que, não sei bem por qual motivo, decidi preservar. Fiz uma última e desesperada tentativa.
Nem sinal.
Saí do carro, batendo a porta, violentamente. Agarrei meu aparelho celular e, sem nenhuma surpresa, percebi que estava completamente sem serviço. Também pudera! Naquele fim de mundo era difícil imaginar que houvessem antenas espalhadas por aquela imensidão desolada. Droga! Para que serve a tecnologia se ela não funciona quando a gente precisa? Andei de um lado para o outro, me contorcendo atrás de qualquer coisa que ressuscitasse meu telefone e o conectasse de volta à civilização. Mas, por mais que tentasse, tal qual meu carro, ele permanecia apenas como a lembrança daquilo que foi um dia...
Num acesso incontrolável, vi-me esbofeteando a lataria e, aos poucos, o vermelho impecável e reluzente deu lugar a uma tonalidade fosca e embaçada. Após um tempo, exausto, desabei. O que faço agora? Pensava na reunião e no escárnio das pessoas, ao constatar minha ausência. Que moral ele tem para nos repreender sobre atrasos ou coisa parecida? Pois é, ele ainda não apareceu. Eu não disse? Pobre Douglas, não tem a mínima competência para ser o presidente das empresas! Eu tinha certeza de que ele não apareceria...Quantas pessoas ele não mandou embora por muito menos? É verdade. É verdade e não posso negar. Mandei muitos empregados para o olho da rua por atrasos ínfimos, não dando qualquer chance de defesa. Fiz disso uma lei maior e, sem querer, eu a estava violando. Sentia-me estuprador de meus próprios conceitos...
De repente, observo um movimento na estrada, algo além das folhas secas sendo levadas pelo vento insistente. Esfrego meus olhos, tentando desvencilhar-me da poeira que me impede de ver com clareza. Aos poucos, a pequena mancha vai tomando forma e o que antes era um vulto transforma-se numa pessoa. Quando, finalmente, compreendo o que se passa, percebo uma velha, carcomida pelo tempo, envolta em panos rotos, tão envelhecidos quanto ela, caminhando lentamente na minha direção.
- Posso lhe ajudar em algo, meu filho? – perguntou, com a voz trêmula, denotando idade avançada.
Por alguns instantes, permaneci imóvel, ainda sob o impacto da presença de alguém ali, no meio do nada. Aos poucos, ia me refazendo do susto, tentando, ao mesmo tempo, encontrar palavras para dizer-lhe algo, interrompendo aquele silêncio que começava a incomodar.
- Por acaso a senhora teria um telefone que eu pudesse usar? Meu carro... Esse desgraçado parou de repente e...
- Tenho sim. Quer vir comigo?
Pensei: ir para onde? Por maior boa vontade que tivesse, ainda que acreditasse em Papai Noel ou bicho papão, era difícil conceber que alguém pudesse morar ali, tão distante de qualquer cidade, esquecida entre árvores e poeira... No entanto, a figura peculiar que se apresentava à minha frente era tão improvável, tão absolutamente improvável, que aquela impossibilidade virtual transformava-se, subitamente, numa possibilidade factual. Não pude, então, contestar. Estava além das minhas forças.
- Claro... – assenti.
Entramos pela mata fechada, por um caminho que não se percebe. Eu ia acompanhando os passos da velha, desviando dos inúmeros obstáculos, sob os olhares de uma coruja extemporânea – afinal, ainda não era noite e, pelo que me constava, era somente aí que elas apareciam. Depois de algum tempo - e alguns múltiplos arranhões! - abriu-se uma pequena clareira e vi-me diante de um pequeno casebre. Ela colocou-se próximo à porta, abrindo-a e convidando-me para entrar.
Por um momento, titubeei, como se não estivesse bem certo se era o melhor a ser feito. Porém, vi que não havia alternativa que pudesse me colocar para fora daquele lugar senão conseguir falar ao telefone – embora, pelas aparências, me fosse difícil acreditar que ali existisse um aparelho. E mais, um aparelho funcionando.
- Sinta-se em casa! Ela é simples, mas tem espaço para abrigar todo mundo...
- Gostaria apenas de telefonar, se possível. Não quero tomar muito do seu tempo.
- Tempo? Mas não é você quem acha que tempo é dinheiro?
Fiquei imóvel e em silêncio. Como poderia aquela velha, curvada pelo peso da idade, saber algo de mim? Rapidamente, tentava processar os dados em meu cérebro cansado, tão acostumado estava em transformar a vida em números e os fatos em palavras, matematicamente alinhadas nas folhas dos relatórios e balancetes das empresas. Não havia possibilidade, a menor que fosse, de que ela pudesse saber sobre mim ou sobre minha vida. Se eu achava que tempo é dinheiro isso é uma coisa só minha e de mais ninguém.
- Como assim? O que quer dizer com isso? – perguntei, demonstrando uma ponta de irritação.
- Sente-se, meu jovem. Não tenha pressa... - apanhou algo encoberto por um pano que estava sobre a mesa – Tenho, ainda, algo a lhe dizer...
Ela retirou o pano, revelando um fruto. Uma maçã, provavelmente o mais belo exemplar que já havia visto! Era grande, muito grande... Tinha a casca, de um vermelho intenso, sem qualquer imperfeição e gotículas brilhantes brotavam em sua superfície, quase como se fosse o frescor da pele de uma mulher, imantada, transpirando desejo por todos os poros. Minha boca, num ato reflexo, encheu-se d´água, querendo sentir o gosto daquele pecado...
Ela estendeu a mão, oferecendo-me. Agarrei a maçã e, sem pensar no que fazia, delicadamente, levei-a, de olhos fechados, até bem próximo de meu rosto. Com todos os sentidos, um após o outro, experimentei-a... Uma sensação indescritível foi tomando conta de mim, um formigamento em todo o corpo, um calor extremado...
A velha, então, dirigiu-se, lentamente, até um pequeno e empoeirado móvel de madeira e, do fundo dele, retirou o que parecia ser uma bola de cristal e a trouxe até próximo de mim, depositando-a sobre a mesa. Mas... Como? Tentei argumentar. Porém, encontrava-me em estado de torpor, não só pela experiência inusitada que havia tido com aquele fruto escarlate, mas, também, hipnotizado pelo brilho que vinha daquele estranho objeto.
- Não tente entender, pois muitas coisas estão além de qualquer entendimento! – continuou, com um pequeno sorriso no canto da boca enrugada – Apenas ouça as previsões que tenho para sua vida e saiba tomar a decisão correta...
Sentei-me à mesa. Ou melhor, meu corpo, aparentemente liquefeito, simplesmente, se desmontou.. A cadeira parecia atrair-me o tempo inteiro, como se quisesse tornar-me parte dela.
A velha começou a falar sobre mim como se eu próprio o fizesse, desenterrando inúmeras lembranças há muito esquecidas, remexendo nas folhas soltas do meu pensamento, dissecando minha vida como se fosse um cadáver ainda quente numa tábua de anatomia. Toda a minha história, página por página... Era impossível! Mas estava acontecendo, ali, agora. Meus desastrados casos de amor, minha inabilidade para captar amigos... Ela ia, calmamente, dizendo tudo e, ao mesmo tempo, criando cadeias, como elos de corrente unidos, projetados para o futuro. Um acontecimento interferindo em outro, e em outro, e em outro...
De repente, ela se calou por alguns momentos e permaneceu imóvel, com as mãos sobre a bola de cristal, acariciando-a pacientemente. Eu tentava, de todas as formas, digerir aquilo que se passava diante de mim, quando aquela cantiga modorrenta sobre minha vida reiniciou. Falava, agora, sobre arrogância e tirania, das vidas que destruí, das inimizades que cultivei e no quanto isso interferirá mais adiante. Meu Deus, como podia suportar tamanha ousadia? Com quem aquela velha encarquilhada pensava estar falando? Dizer aquilo tudo que dizia, agora, de mim, impunemente... Como era possível?
- Acho que basta, não? – interrompi as previsões, levantando-me abruptamente.
- O que lhe incomoda? A verdade...?
- Não tenho mais tempo a perder aqui... Queria apenas utilizar o telefone e não ficar ouvindo esse monte de baboseiras a meu respeito!
- Tenha calma, ainda não acabou...
- Claro que acabou! Não preciso ficar aqui sendo insultado por alguém que nem conheço! – meu tom de voz era alto e áspero. Caminhei, resoluto, em direção à porta.
- Você é quem decide sobre seu futuro... - ela ergueu as mãos e, de olhos fechados, entoou algum cântico indecifrável - Você teve a chance de mudar e entender seus erros mas, pelo jeito, não aproveitou. Continua achando que tempo é dinheiro e que você está sempre acima de tudo, não? Pois bem... Terá que aprender de novo...
Já estava ficando de saco cheio de tudo aqui! Ainda ia dizer algo, mas desisti. Agarrei, firmemente, a maçaneta.
Um flash.
Um relâmpago.
Inexplicavelmente, percebi um intenso facho de luz que saía de mim, atravessando a bola de cristal para, finalmente, atingir a velha em cheio, no coração. Ela se contorcia envolta num halo incandescente que a transformava numa figura disforme e volátil. Enquanto suas histéricas gargalhadas devassavam o espaço, tive a impressão de que as rugas de seu rosto iam, aos poucos, desaparecendo. Tempo não é dinheiro... Entre um estrondo e outro, pude ouvi-la, com nitidez. Tempo é vida... Tempo é vida... Assustado, em pânico, saí do casebre, que parecia transformar-se numa supernova errante.
Cambaleante, abri caminho pela mata – estranhamente muito mais alta do que quando passei por ali algum tempo antes. Tentava encontrar a estrada, encontrar meu carro, algo que me lembrasse os motivos que me levaram até aquela situação inusitada. Sentia-me cansado, como se carregasse o mundo nos ombros. Passei as mãos pelo meu rosto, para retirar o suor caudaloso que escorria, embaçando-me a visão e percebi, no tato, minha pele flácida. Imediatamente, levei as mãos à cabeça e, horrorizado, percebi que elas arrancaram, sem qualquer dificuldade, tufos de cabelo branco. Meus Deus! O que está acontecendo? O que, diabos, está acontecendo?
Alcancei a estrada. O matagal cobria todo o acostamento, avançando sobre o asfalto. Cadê meu carro? Fui caminhando, completamente perdido. Todos os lugares daquela reta eram semelhantes. Mas eu tenho certeza de que não estava assim, tão distante. Mais alguns passos. De repente, vejo algo mais ao longe. Um carro! Com o resto das forças que sobraram, aperto o passo. Percebo, porém, que não poderia ser o meu... Não, definitivamente não poderia ser ele. Uma lataria apodrecida, coberta de limo, sem motor, volante ou banco. Chego até ele. Não...! Dou um grito, que ecoa pelo vazio. Estarrecido, vejo, através do vidro quebrado, a medalhinha – a mesma para a qual havia recorrido! - presa no retrovisor.
Praticamente, arranco a porta fora. Entro naquilo que, algum dia, foi um veículo, e procuro mirar-me no espelho. Com alguma dificuldade, utilizando-me da manga da camisa – ou, pelo menos, o que antes era a manga da camisa e agora parecia um trapo velho e amarelado – consigo limpá-lo. Olho-me. Não me reconheço. Devo ter, pelo menos, dez anos a mais...
De repente, sou invadido pela lembrança das palavras daquela velha em chamas... Tempo não é dinheiro. Tempo é vida... A conclusão é óbvia. Ela havia me roubado o tempo. Ela havia me roubado a vida...
Como se fosse um recém-nascido, ainda preso à placenta, mexo meus braços, estico minhas pernas, emito um doloroso choro de vida e, sem entender, saio do carro, sabendo que terei que recomeçar. Caminho pela estrada, ainda sem direção. Sei, apenas, que será uma longa caminhada.

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