02 maio 2006

Conto #3 - A Maçã... e assim se fez a História

Conto #3 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)


A Maçã... e assim se fez a História


Era um fim de tarde quente. Depois de um dia cheio de telefonemas , encontros com clientes e conversas intermináveis sobre negócios , fui interrompido pela voz de dona Flávia... às vezes penso que ela é meu anjo da guarda incorporado na forma de secretária. Ela me mima o tempo todo, e arriscaria dizer que sou bem sucedido graças ao talento e aos esforços dela.
Quando a porta do meu escritório se abre e ela chama a minha atenção para o relógio, que tenho bem em frente a minha mesa, sinto-me como um garoto sendo liberado para o recreio.
Hoje é 19 de junho de 2006, dia do meu trigésimo aniversário, vou comemorar em uma chácara que fica numa cidade próxima. São apenas vinte minutos de estrada, e apesar do cansaço, estou ansioso.
Guardo os documentos, verifico se está tudo em ordem.
Dona Flávia ainda espera por mim, os outros funcionários já saíram.
Sinto vontade de convida-la para a minha festa, mas sei que recusará, com muita educação, dizendo ter um compromisso inadiável. Sei o quanto ela adora as novelas das sete, das oito , e que por amor ao trabalho, abre mão de assistir a das seis.
Ao sair do elevador, pela “enézima” vez ela me diz: “- Feliz aniversário, senhor Douglas”.
Gosto do seu sotaque carioca.
A vida vale a pena e me realizo desfrutando cada momento, fazendo bons negócios, me divertindo com os amigos ou simplesmente guiando.
Em relação às mulheres, estou decepcionado. Sinto como se estivessem sempre tentando tirar alguma coisa de mim... parecem tão iguais, só mudam a cor da calcinha. Desejo, realmente, conhecer uma que abale minhas estruturas, que mude o rumo da minha vida e faça de mim um outro homem.
Taí, hoje, meu desejo de aniversário é: encontrar uma mulher e envelhecer ao lado dela.
A tecnologia e os estudos avançados na área médica, não permitem que envelhecer seja doloroso para quem tem o espírito jovem.
Falta pouco pra chegar no pedágio, mais dois quilômetros e estarei na chácara.
Parece que tem alguma coisa na pista... ainda não consigo ver o que é.
O que será? Está imóvel. Deve ser um pedaço de pneu, ou uma caixa...uma pedra? Vou passar por cima mas tomara que não acerte os pneus .
Que merda! É uma coruja!
Não posso desviar pois tem um caminhão bem aqui na outra pista. O que essa idiota vai fazer? Droga, está vindo de encontro aos faróis!...
Perco o controle do carro, derrapo e vou parar no acostamento, o carro trava!
Pane geral - o painel inteiro apagou.
Abro a porta e salto rapidamente com medo de uma colisão, ainda estou atordoado e não entendo o que aconteceu.
Não vejo nenhum posto policial, nem posto de gasolina... aliás onde estão os carros desta rodovia?
Celular nestas horas é uma maravilha, mas com a bateria descarregada ?!
Ninguém merece...
Não consigo me localizar, será que saí da estrada principal e peguei outra, que eu não conheço?
Dá vontade de chutar o carro, mas não resolveria meu caso.
Consigo perceber uma casa na escuridão...- espero que não tenha nenhum cachorro bravo, de plantão, e nem buracos pra eu torcer meu pé.
- Ô de casa!? Tem alguém aí?
Ei !!!! Tem alguém em casa? Preciso de ajuda.
Pela fresta da janela surge uma tênue claridade a porta se abre e aparece uma velha baixinha e muito magra com uma lamparina na mão.
- Boa noite!
- Desculpe-me por bater na sua porta a essa hora, uma coruja veio de encontro
ao meu carro, perdi a direção.
A bateria do meu celular descarregou e preciso de ajuda.
- Ao contrário do que o povo fala, coruja traz muita sorte, e mudanças!
Entre meu jovem, eu já esperava por você.
- Não, eu nem quero entrar. Só preciso de um telefone e um mecânico!
O bicho não teve sorte, pois bateu com toda a força contra o carro.
- Não se preocupe, ela sabia que seria assim. Não cai uma folha sequer, se não
estiver escrito.
Ela calmamente estende sua mão magra, enrugada e fria. Toda a fragilidade física daquela mulher desapareceu quando senti a força do seu olhar. O menino em mim, apareceu outra vez – e sem oferecer resistência, entrei.
- Que bom que tenha vindo pedir ajuda.
Sentei-me num caixote de madeira que servia de mesa ou banquinho.
- Álias, só poderia vir aqui, pois não vi nenhuma outra casa ao redor.
- Qual é o seu nome meu jovem?
- Me chamo Douglas.
O casebre era muito pequeno, muito pobre.
Achei melhor justificar a minha pressa:
- Tem gente me esperando.Venho muito pra esses lados e nunca me aconteceu nada parecido.
A velha se afasta e volta com um pratinho de papelão com figuras de palhacinhos , nele uma maçã cortada em cruz.
- Hoje, por acaso, é seu aniversário , não é?
Ela se acomoda na cama.
Fico intrigado - afinal, como aquela velha poderia saber do meu aniversário?
- Por que a senhora pergunta? Realmente, é meu aniversário.
Do nada ela começa a cantar: “Parabéns pra você, nesta data querida. Muitas felicidades e surpresas na vida!”
Deu um sorriso murcho, banguelo e pareceu se divertir comigo.
- Não é só isso que sei sobre você. – diz ela.
Aquela conversa estava me aborrecendo e resolvi me levantar, agradecer e sair. Esperaria no carro. De manhã, tomaria providências.
- Não faça isso meu jovem. Eu preciso de você. E hoje, especialmente, você
precisa de mim. Temos muito pra falar.
Quais seriam as intenções desta velha?
- Você não vai se arrepender de passar esta noite aqui, a temperatura vai cair muito.

- A noite está super quente.
- E a tempestade?
Ela abriu a porta, uma rajada de vento invadiu o casebre. Parecia mais o prenuncio de um tornado. Em seguida a chuva despencou. Eu não podia acreditar. Tive a impressão de que havia uma equipe de produção em efeitos especiais, fazendo eu “pagar mico”.
Aquele barraco suportaria o vendaval?
- Você fica aqui esta noite e procura ajuda amanhã. Nessa escuridão, embaixo
desta tempestade, você “levaria uns dez anos” pra chegar num lugar pra
conseguir socorro.
A velha sentou novamente na cama, que tinha um colchão de palha. Eu me acomodei numa rede que estava pendurada diante dela.
Então, me ofereceu um pedaço da maçã. É claro que recusei. Como poderia pensar em comer numa situação dessas?
Lembrei-me de todos que deviam estar na chácara e bem preocupados com o meu atraso, afinal sou pontualíssimo; graças à dona Flávia.
Interrompendo meus pensamentos, me dei conta de que ela estava propondo-me um desafio: caso eu comesse partes da maçã, poderia ter acesso a qualquer informação sobre qualquer pessoa. Sendo que uma das partes me daria o direito de saber sobre a minha vida.
Fora os aborrecimentos que passei nos últimos minutos, ainda teria que agüentar uma vidente enchendo meus ouvidos com baboseiras?
Logo vi que a noite seria longa.
- O que vai pedir em troca, como pagamento?
Ela respondeu que aceitaria o que fosse de menor importância pra mim.
Lá fora, o céu desabava em água e àquela altura do campeonato só me restava topar a brincadeira.
Antes ouvir besteiras do que ser surdo.
Para que a noite passasse rápido, concordei com a idéia do jogo de adivinhações.
- Se você comer este pedaço eu vou dar informações sobre a vida profissional de quem você quiser.
Pelo jeito dela falar me senti a própria Branca de Neve sendo enganada pela bruxa.
- Este outro pedaço... você pode ficar sabendo da vida amorosa de qualquer um:
escândalos, amantes , fantasias. – ela falava com orgulho.
Muito interessante... agora só faltava aparecer os sete anões dançando à minha volta, usando capinhas de chuva...
- No terceiro pedaço – continuou - revelarei os segredos mais secretos de cada
um deles.
A quarta parte: descreverei o que vai acontecer com você nos próximos anos.
Peguei o primeiro pedaço e pedi para que ela me contasse a vida amorosa de cada um que eu conhecia. Quando ela começou a falar, fiquei fascinado!
Com tanta riqueza de detalhes não poderia ser mentira - e identifiquei informações verídicas que ela jamais teria conhecimento.
- E então? - perguntou ela. Devo continuar?
Eu não queria dar o braço a torcer, mas estava muito curioso para saber mais, sobre a vida de todo mundo! Acabei sucumbindo ao desejo e comi mais um pedaço.
Saber da vida intíma , dos outros é legal, mas não me traria lucros. Então decidi escolher sobre o item: vida profissional.
A velha foi brilhante, me deu dicas precisas e antecipou cada passo dos meus concorrentes.
Lembrei-me do pessoal da chácara ... mas eu não poderia nem pensar em sair agora. A conversa está muito boa e a velhinha tem um dom apurado para prever o futuro.
Ela me alertou para fazer só mais uma escolha, pois estava amanhecendo o dia e ela só podia “enxergar” o futuro durante a noite. Podia escolher entre: ouvi-la contar sobre minha vida, ou ter acesso aos segredos mais ocultos de quem quer que fosse.
- Minha vida, não tem mistério, tenho estabilidade econômica, sou bem sucedido e só preciso encontrar a mulher certa para constituir uma família. E isso depende só de mim.
- Será?
- Claro, meu destino sou eu que traço.
- Se você diz, eu acredito.
- Opto por saber os segredos íntimos de todos que eu der o nome... pode ser?
- Você é quem manda.
Eu ouvia extasiado, mas não resisti ao cansaço e dormi.
Acordo sem saber onde estou, levo ainda um tempo pra lembrar que lugar é aquele. Procuro pela velha, ela não está.
Quando abri a porta , o sol estava a pino, saí ainda atordoado e fui andando em direção à estrada para ver o carro. Sempre dava uma olhada pra trás e tentando entender o por quê daquele casebre perdido no meio de um pasto imenso.
Indo em direção à estrada “dei de cara” com a placa de um shopping, do outro lado da rodovia . Estranho não tê-lo visto na noite anterior.
Quando avistei a pista, fui tomado de um tremendo desespero pois meu carro não estava mais no acostamento.
Atravessei a estrada e fui em direção a uma oficina mecânica que tem na parte externa do shopping. Enquanto andava podia ouvir as batidas do meu coração. Percebi as pessoas me olhando de maneira estranha , as crianças até viravam a cabeça para me observar melhor e eu percebi uma mãe dando “ um tranco’ no braço de um garoto sardento, de olhar insistente.
Perguntei a um empregado da oficina se ele tinha visto algum guincho levar um carro que estava no acostamento. Ele perguntou qual era a marca, quando falei, ele e outros dois, caíram na gargalhada.
Fiquei invocado e perguntei qual era a piada.
- Uma lata velha dessas... você deveria agradecer a quem levou o carro embora!
Neste instante, minha mente deu um estalo! No trajeto até ali, eu estranhei os modelos de carros que eu tinha visto, as roupas das pessoas que passavam por mim e até suas fisionomias estavam diferentes. A arquitetura do shopping também me pareceu muito original.
O mecânico perguntou o que estava acontecendo. Contei tudo - apontei o casebre do outro lado da pista e falei sobre a velha.
Ele me olhou como se eu fosse maluco, disse tratar-se de um engano pois todos sabiam que ali, naquelas terras, só transitava uma mulher! Uma poderosa empresária: a dona daquele shopping.
- Ela também exporta maçãs e guarda várias caixas naquele depósito. Vem
cientista do mundo todo pra pesquisar. Dizem que ali, elas se conservam
mais vermelhas, muito mais doces e suculentas.
- Uma vez conseguimos driblar os capangas da fazenda, e vimos o depósito
lotado de caixas de maçã.
- O cheiro deixa a gente doido! – diz o gordinho.
- Hoje, bem cedinho dona Eva passou por aqui. A mulher é tão bonita, caboclo,
é tão gostosa, que de ontem pra hoje parece que remoçou uns dez anos!
comentou outro rapaz.
- Vai ver foram os dez anos do desaparecimento do marido que “fez” bem pra
ela.
Todos riram.
- Dá só uma olhada no jornal .
Quando o mecânico colocou o jornal sobre o balcão, à minha frente, senti uma descarga gelada dentro de mim, quase perdi os sentidos. Na primeira página estava estampada minha foto.
Arranquei o jornal das mãos dele e li a manchete: “DEZ ANOS DO DESAPARECIMENTO DO EMPRESÁRIO DOUGLAS BELUZZO”.
O texto dizia: “Sua admirável esposa tomou as rédeas da empresa, triplicou o patrimônio e até hoje ela não perdeu a esperança de encontrar seu marido ou pelo menos localizar o seu corpo para dar-lhe um funeral digno”.
No canto da página estava a foto de uma mulher, linda. Aproximei o jornal e não pude crer, reconheci a fortaleza daquele olhar.
Jamais esqueceria, era o olhar da velha.
- É a velha! - gritei.
Algo dentro de mim dava esta certeza, de não se tratar de uma filha ou neta, mas sim da própria velha que me acolheu durante a noite. Só que muitos anos mais nova.
- Tá ficando doido, ô velho maluco!
Como velho maluco , se acabei de completar trinta anos e não aparento a idade que tenho?
Ao abaixar o jornal, vi do outro lado da oficina a figura de um homem grotesco, envelhecido , cabelos desgrenhados e bem grisalhos, pele envelhecida e roupa puída.
Senti desprezo por ele. Mas no mesmo instante corri de encontro a ele e percebi que se tratava da minha imagem refletida no espelho.
-Meu Deus, não é possível! Como pôde acontecer isso comigo?
Diante dos meus olhos estava um homem acabado, envelhecido e imaginei que talvez tivesse sido drogado pela velha e passado algum tempo desacordado. Pela minha aparência, alguns dias, quem sabe... Corri até o balcão tive mais um choque - vi a data do jornal: 19 de junho de 2016.
- O que está acontecendo? – perguntei furioso. Vocês são loucos ou querem me deixar maluco?
- Calma, tio.
- Esse miserável, deve estar drogado ou bêbado. - falou o mais invocado dos
três.
Nesse instante lembro do acordo que fiz com a velha para participar do jogo. Dei mais valor à vida e ao futuro dos outros.
- Aquela bruxa velha, vagabunda, deve ter achado que minha vida não tinha a
menor importância pra mim. Ela me roubou! Tirou tudo o que eu tinha, me
enganou!
- Roubou o quê, de um pé rapado que não tem onde cair morto?
Insisti, mesmo sabendo que ninguém acreditaria em mim:
- Ela me roubou ! Aquela mulher maldita, acabou comigo...
Naquele instante um dos rapazes, solidário à minha dor, como só um homem traído sabe ser, perguntou:
- Espera aí amigo, não fica desesperado. Afinal, o que ela roubou de você? Seu
carro?
- Não, essa bruxa roubou muito mais do que eu ou você poderíamos imaginar ...
- mostrando desesperadamente a data do jornal - ...ela roubou dez anos da
minha vida !
Ninguém parecia entender o que eu dizia. Onde estaria dona Flávia?
-É companheiro, minha ex-mulher também acabou com a minha vida; mas as
mulheres são assim. Tem coisas nesse mundo que não mudam nunca! Vem comigo, vou te pagar um Mac lanche feliz, e uma tortinha de maçã!

Um comentário:

LEONARDO DE MORAES disse...
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