Conto #10 (de 19),
do 1º Concurso "Janete Clair" de Criação Ficcional
do Grupo Roteiros para Televisão (GRTV-Yahoo)
Desvão do Tempo
Douglas chutou o pára-choque do carro e soltou um palavrão. Com as mãos na cintura olhou ao redor. Anoitecia rapidamente e aquela maldita estrada era deserta. Onde ia arrumar água, pensou. Como foi se esquecer de uma coisa tão idiota: checar a água antes de pegar a estrada?
Agora estava ali, perdido no meio do nada, numa porra de uma estrada onde não passava uma porra de um carro, onde não tinha uma porra de uma casa.
- Puta que o pariu!, xingou em voz alta.
Tirou o celular do bolso do paletó. Fora de área. Começou a andar em círculos, como se procurasse uma saída. Repentinamente vislumbrou por entre algumas árvores o brilho de uma luz. Uma casa! Enfim uma coisa boa naquela porra daquele dia em que tudo tinha dado errado.
Caminhou o mais rápido que pôde pelo mato em direção à luz salvadora. À medida que se aproximava, ia tentando adivinhar os contornos da casa, na verdade, um casebre miserável, podia ver bem agora. Mas, tudo bem, pensou; por mais miserável que seja, água todo mundo tem. Nem que seja de um poço. O súbito medo de que a solução do seu angustiante problema não estivesse tão perto como pensara o fazia caminhar cada vez mais depressa, quase corria, como se deixasse assim o pessimismo para trás.
Ia dar um esporro no Antunes, aquele viado safado! Como é que arruma um cliente num buraco daqueles? Mesmo que fechassem o negócio, nem valia a pena o tempo perdido pra chegar até lá. E agora, na volta, essa...
O casebre era ainda mais miserável do que parecia visto de longe. A porta estava entreaberta, como se alguém já o esperasse. Refreando a ansiedade, olhou pela fresta e viu uma velha, enrolada num xale. Estava de costas para a porta, sentada numa cadeira, parecia bordar ou costurar.
Douglas empurrou a porta com cuidado. Chamou-lhe a atenção o fato de, embora muito pobre, ser o casebre muito limpo.
- Por favor, eu preciso de um pouco de água. Será que a senhora pode me ajudar? Perguntou já dentro da pequena sala, que era ao mesmo tempo quarto.
A velha levantou-se com aquele esforço característico das velhas que se levantam de uma cadeira. Já devia estar perto dos cem, pensou Douglas. Ao virar-se ele percebeu que o olhar dela tinha uma expressão que ele não soube definir bem e que, de certa forma, o surpreendeu. Era gentil, mas penetrante. Apesar da evidente idade avançada, emanava dela um vigor inesperado.
- O moço veio de muito longe, não é? Nessa estrada aqui não passa muito carro, não.
A velha olhava-o com interesse. Mas não parecia surpresa ou assustada por ter, de repente, um estranho em sua casa. E continuou falando.
- O pessoal prefere ir pela estrada nova...
- É – respondeu Douglas, querendo encurtar aquela conversa. Mas me informaram que por aqui eu cortaria caminho..
- Cortar caminho... ganhar tempo, não é? O moço queria ganhar tempo...
- É, eu tenho outros compromissos ainda hoje...
Parou, imaginando que aquela velhinha que parecia saída de outro mundo não ia entender a importância do que ele estava falando.
- Mas a senhora tem aí um pouco de água, uma vasilha...
- O moço tem muita pressa, não é? Está sempre correndo, para lá... para cá... Não presta muita atenção nas coisas, nas pessoas, não é? Assim o moço acaba trapaceando o tempo...
Douglas já estava irritado com aquela conversa.
- Por favor, dona... eu só queria um pouco de água para botar no carro.
- Eu sei, meu filho, vou te dar a água.
A velha foi andando, arrastando os chinelos, em direção a um canto do casebre, que não chegava a ser um outro cômodo, mas era separado por uma cortina florida que ela deixou meio aberta. Continuou falando.
- ... e o tempo pode não gostar...
Enquanto falava, procurava alguma coisa num armário velho, cheio de panelas e bugigangas. Voltou trazendo na mão uma vasilha e indicou a bica d’água. Entregou-lhe também uma maçã, que ele não percebeu de onde saiu.
- O moço tem filho, não tem? O menino já está crescidinho...
Douglas não prestava muita atenção ao que a velha dizia. O que precisava era da maldita água para resolver o problema de aquecimento do carro e ir embora daquele lugar perdido no mundo. Disse obrigado e pegou a vasilha, com pressa.
- Velha maluca! Nem tenho filho! resmungou enquanto saía da casa em direção à bica improvisada com um cano suspenso por uns bambus, que vinha não se via de onde. Encheu a vasilha.
Deu a última mordida na maçã, cuspiu uns caroços e jogou fora o miolo. Caminhou rapidamente até a estrada, sentia a umidade na barra da calça. Aquela noite ia ser fria, pensou.
Despejou a água no reservatório do carro, fechou o capô. Abriu a porta do carro e sentou ao volante. Instintivamente ajeitou o retrovisor. Olhou-se olhou no espelho e viu um rosto, um rosto diferente. Não exatamente diferente, era seu rosto, por certo, mas havia algo... não sabia bem o que. Pareceu-lhe que os cabelos brancos já não eram tão tímidos, nas têmporas. Na verdade tomavam-lhe quase toda a cabeça. O rosto era mais gordo, mais flácido. Deve ser a luz, pensou. Àquela hora já havia escurecido bastante, ele mal enxergava a estrada. Notou que o mato parecia mais alto.
- Devo estar cansado, essas olheiras...
Deu partida no carro. Enfim ia sair daquele lugar onde nem devia ter ido. Só mesmo o idiota do Antunes para fazer ele perder um tempo precioso com aquela visita.
Dirigia o mais rápido que podia, apesar da estrada ruim e de só contar com os faróis. Só então se lembrou do celular, fora de área o tempo todo naquele fim de mundo. Tateou o bolso do paletó, no banco do carona, mas não conseguiu encontrá-lo. Pareceu-lhe de repente que as mãos que seguravam o volante estavam mais envelhecidas. Lembrou-se da velha, bruxa esquisita. Deixa pra lá, pensou. Tinha que sentar o pé no acelerador, estava super atrasado. Não conseguia lembrar porque estava naquela estrada, seguia instintivamente. Chegou à rodovia, tomou uma determinada direção sem saber porque.
De repente um toque que ele não reconheceu de imediato. Mas era de um celular, tinha certeza. Será que tinha mudado o tom da campainha e não lembrava? Achou enfim o celular caído sob o banco. Reduziu a velocidade, fez uns malabarismos ao volante e conseguiu pega-lo sem parar o carro. Aquele não era seu celular, devia ser do babaca do Antunes. Atendeu irritado.
- Alô.
Do outro lado a voz de um menino.
- Papai? Você ainda vai demorar?
Um comentário:
Very interesting.
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