18 agosto 2009

Oficinas literárias - o modelo americano

PESQUISADOR DESCREVE A HISTÓRIA DAS OFICINAS DE ESCRITA NAS UNIVERSIDADES DOS EUA, QUE NÃO PARAM DE CRESCER, E DEFENDE QUE, MAIS DO QUE "FORMATAR" OS ALUNOS, OS CURSOS DÃO A ELES UM LUGAR NA SOCIEDADE

DA REDAÇÃO

Aulas práticas de literatura já viraram história nos EUA.
Em "The Program Era" (A Era dos Programas, Harvard University Press, 466 págs., US$ 35, R$ 64), Mark McGurl argumenta que não dá para compreender a literatura norte-americana do pós-guerra sem conhecer os programas universitários de escrita criativa.
Compreender essa história ajuda a identificar uma raiz de boa parte da nova literatura brasileira. A Universidade de Iowa pode ser tomada como um exemplo central. Passaram por oficinas em Iowa profissionais da escrita como Raimundo Carrero, Charles Kiefer e Affonso Romano de Sant'Anna.
Este fez nos anos 70, com Silviano Santiago, algumas das primeiras experiências do gênero em uma universidade brasileira (a PUC-RJ). Sant'Anna explica como funcionavam as coisas nos EUA.
"Havia dois conjuntos de participantes: os americanos faziam o curso de criação literária como um curso normal de graduação e pós. Tinham aula de conto, poesia, epopeia, roteiros etc. Tinham que apresentar trabalhos rotineiramente. Na parte internacional, éramos mais livres; durante nove meses, tínhamos tempo para terminar projetos que trazíamos e apenas deveríamos participar de seminários expondo nossos trabalhos."
Professor de letras na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, Mark McGurl esmiuça as diferentes formas como escritores viram a relação com a universidade.
Da resignação pela necessidade de sobreviver -caso de Nabokov, que lecionava literatura em Cornell enquanto escrevia "Lolita"- às experimentações -como a ficção de hipertexto na Universidade Brown-, McGurl argumenta que o fato de vivermos uma "Era dos Programas" não é uma coisa ruim, afinal. (EGN)

FOLHA - A ascensão da escrita criativa é devida mais a uma disposição social ou a razões de mercado?
MARK MCGURL - É difícil separar as duas coisas. A natureza do sistema de ensino superior nos EUA o faz muito sensível à pressão do mercado. Há um sistema universitário em que é muito fácil inovar e muitos alunos que querem estudar escrita criativa.

FOLHA - O destino da escrita criativa é se tornar tão difundida quanto as matérias de história da literatura?
MCGURL - Hoje a história da literatura é muito maior que a escrita criativa, mas as turmas de literatura tradicionais não estão crescendo. Departamentos comuns de literatura ou teoria literária têm ficado estáveis ou mesmo levemente diminuídos nas últimas décadas, enquanto os programas de escrita criativa estão crescendo a taxas extraordinárias. Alguns dizem que há um limite no mercado. Outros perguntam se as oficinas, a partir deste momento de recessão e reorganização da economia, serão uma prioridade no futuro.

FOLHA - Quantos cursos existem nas universidades dos EUA?
MCGURL - Cerca de 750 cursos de graduação, de aproximadamente 2.000 faculdades. Cerca de 350 cursos de pós-graduação. É claro que o mercado editorial não pode absorver tantos escritores, há um enorme excesso de oferta.

FOLHA - Que fará toda essa gente?
MCGURL - Alguns se tornarão grandes escritores. Vão escrever poesia e prosa e ensinar poesia e prosa. Outros se tornarão escritores menos conhecidos ou professores de escrita. Para o resto, é um treinamento sem uso profissional, é uma extensão da "educação liberal".

FOLHA - Os velhos exemplos do escritor como jornalista viajado, sábio isolado ou servidor público com tempo livre... estão datados?
MCGURL - É claro que há espaço para esses tipos de escritor. Se observar a história da literatura, especialmente nos EUA, o jornalismo tem sido a instituição-chave, com inúmeros escritores que participam do jornalismo de uma forma ou de outra. Essa opção ainda existe, mas a opção de ensinar a escrita junto com a prática da poesia ou da prosa está crescendo. Surge como uma carreira de escritor: "escrever enquanto ensina". Sempre haverá o forasteiro vindo sabe-se lá donde, mas a universidade cresceu a ponto de recentemente se tornar o centro da produção.

FOLHA - Quão norte-americana é essa tradição?
MCGURL - O primeiro programa de pós-graduação começou nos anos 1930, a multiplicação começou nos anos 60 -por décadas, foi algo exclusivamente americano. Isso se dá em parte por conta do sistema educacional do país, mas também podemos amarrá-lo a uma tradição da expressão individual: não importa onde nasça, você pode ser o que quiser, inclusive um artista.

FOLHA - Que autores consagrados são os exemplos mais extremos de entusiasmo e descrença em relação aos programas de oficinas de texto?
MCGURL - É mais fácil começar pela visão negativa. De Algren [autor de "O Homem do Braço de Ouro"], nos anos 60, e Kay Boyle [1902-92], nos 40 e 50, a, mais recentemente, Tom Wolfe, de "A Fogueira das Vaidades", e o contemporâneo Jonathan Franzen [de "As Correções"], todos mostraram extremo ceticismo, por vários motivos diferentes. Muitos apontam que os escritores ficaram "institucionalizados", no sentido de que não têm originalidade, copiam as ideias dos colegas de classe. Em um nível é inegável que a universidade tenha ajudado muitos grandes escritores a existir, pois deu a eles uma chance de escrever. Deu-lhes uma forma de ganhar a vida enquanto escreviam. Os defensores da escrita criativa seriam aqueles que frequentaram ou ensinaram escrita criativa. Não encontramos muitos que se levantassem para dizer "isso é ótimo". Há vergonha relacionada à ideia.

FOLHA - O sr. não menciona nenhum nome?
MCGURL - Que eu saiba essa pessoa não existe. Há os que defendem a escrita criativa em reação aos ataques, dizendo "não, não destrói a originalidade". Mas tal defesa não é necessária porque muita gente quer fazer oficinas.

FOLHA - O exercício prático da oficina é sua única vantagem em relação a outras disciplinas?
MCGURL - Por um lado, o jovem escritor ganha conhecimento. Ao sentar-se com colegas que leem seu texto, ele ainda obtém uma forma pequena de publicação, vê como as coisas funcionam. Se estiver em um programa famoso, como o da Universidade de Iowa ou o da Universidade Columbia, podem-se estabelecer contatos. Além disso, muitos pais de garotos de classe média não querem que eles fiquem tentando ser escritores, acham que deveriam tentar ganhar a vida de forma mais rentável. Para esses jovens, o curso é um abrigo: "Estou na faculdade!" É interessante ver que, por temor, há uma tendência a manter esses cursos dentro do departamento de inglês. Assim temos escritores lado a lado com pesquisadores. Por outro lado, há o medo do pessoal de escrita criativa de que a teoria possa arruinar a musa.

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Sempre haverá forasteiros, mas a universidade cresceu a ponto de se tornar o centro da produção
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FOLHA - Por que há resistência ao papel do aprendiz na literatura, mas não nas artes plásticas ou no teatro?
MCGURL - Uma das maiores defesas da escrita criativa é esta: em que ela é diferente de aprender pinceladas? Tem a ver com a mitologia específica do escritor. E com uma tradição de esquecer a história da literatura -pois grupos sempre foram importantes para os escritores, aprender também. Dizem que se pode aprender a escrever em casa, sem ir à escola, que "o aprendizado deveria ser ler; depois comece a escrever". Em parte o que os alunos de escrita criativa fazem é isso: ler e escrever. Mas a formalização incomoda.

FOLHA - Quanto a literatura de hoje é "programada"?
MCGURL - É programada, mas é preciso pensar na ideia de "criatividade programática". Precisamos superar noções românticas de criatividade -de que é inexplicável, de que vem de um lugar estranho para um escritor solitário. Instituições podem gerar programas que tenham criatividade autêntica.

FOLHA - A oficina apresenta uma receita para a respeitabilidade?
MCGURL - Sim. Vivo em Los Angeles, onde há milhares de roteiristas. É difícil dizer "sou um roteirista". Vão perguntar que filmes você escreveu. Isso vale para o escritor. O curso permite ao sujeito dizer "tenho um diploma, portanto sou escritor".

FOLHA - Os escritores formados em oficinas logo dominarão a literatura de internet?
MCGURL - É tentador pensar que a internet democratiza a literatura, que ter um diploma, ter contatos não sejam mais importantes. Mas o problema da internet é: quem vai prestar atenção ao que aparece, com tal volume de informações? Ainda haverá quem nos conduza a alguns sites e não a outros. Um "romance Twitter" de Thomas Pynchon eu leria -só não sei se seria bom.

Relato de um escritor aprendiz DANIEL GALERA DESCREVE SUA PARTICIPAÇÃO NO CURSO DE TÉCNICAS DE LEITURA E ESCRITA QUE, DE FORMA "SURPREENDENTE E INEVITÁVEL", FEZ DELE UM AUTOR

DANIEL GALERA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Surpreendente, mas inevitável. Quando, em algum momento de 1999, o professor Assis Brasil [que coordena oficinas de texto na PUC-RS] colocou nesses termos para seus alunos o desfecho ideal de todo conto, eu sabia exatamente do que ele estava falando. Sabia porque, aos 20 anos, já tinha lido centenas de contos. Mas eu sabia sem saber.
Tinha a experiência, mas não a consciência da experiência.
Sabe lá quanto tempo eu levaria para chegar sozinho a uma fórmula tão elegante para definir o instante em que o subtexto, tão essencial ao conto moderno, vem à tona. Talvez nunca chegasse. Foi esse tipo de coisa que a oficina de literatura do Assis me deu de bandeja.
Quando entrei na oficina, eu já escrevia contos e os divulgava na internet, mas me considerava um diletante. Era um sujeito que só começava a suspeitar que a literatura talvez não fosse um interesse passageiro como outrora foram o violão, as histórias em quadrinhos, o web design.
Eu cursava publicidade e propaganda sem convicção nenhuma, e o futuro me parecia um shopping center onde teria de passar a tarde a contragosto num domingo de chuva. Mas eu lia muito desde piá, e aquela coisa de escrever ficção estava ficando séria. Por isso me inscrevi na oficina.
Recuemos um pouco. Um dos contos que mais marcou minha, cof, juventude, foi "O Beijo", de Anton Tchekhov. O enredo é simples. Um batalhão de soldados russos acampa num vilarejo e é convidado por um aristocrata local, o general Von Rabbek, para um chá festivo. Um militar particularmente tímido e apagado, de nome Riabovitch, perde-se nos corredores escuros da mansão e é beijado por uma mulher desconhecida que estava à espera de um outro qualquer.
O incidente afeta o ingênuo protagonista de maneira duradoura. Ele passa as semanas seguintes em deslumbramento, fantasiando sobre a identidade e a aparência da mulher. O sentimento de alegria persiste.
Marchando à noite, ele tem a impressão de que a luz distante de uma janela ou fogueira está piscando secretamente para ele, como se soubesse do beijo.
Tempos depois, o batalhão acampa de novo no vilarejo.
Riabovitch torce para que o general os convide para outro chá, na esperança de rever a mulher. Mas a essa altura ele já começa a reconhecer a insignificância do episódio do beijo, constatando o abismo entre o fervor de sua imaginação e a indiferença do mundo ao redor. E então o mensageiro do general de fato vem e novo convite é feito ao batalhão. Riabovitch, amargurado, decide não ir e se mete na cama.
Esse conto sempre me causou profunda impressão, e fiquei muito tempo sem entender o motivo. Há elementos óbvios com os quais todo ser humano se identificaria. "Todo esse sonho que agora me parece tão impossível e excepcional é na verdade bastante ordinário", conclui Riabovitch ao escutar as conversas vulgares de seus companheiros sobre encontros com mulheres.

Subtexto
Quem não passou longos períodos entregue a fantasias, amorosas ou não, apenas para "cair na realidade" de uma hora para outra? Quem não conhece a frustração ou a melancolia que disso resulta? Mas o conto é muito mais do que isso. Do que, então, ele realmente trata?
Numa das várias aulas em que abordou o subtexto literário, Assis Brasil nos deu como exemplo uma famosa anotação para um conto encontrada num caderno de Tchekhov:
"Um homem vai ao cassino de Monte Carlo e ganha uma fortuna na roleta. Volta para o hotel e se suicida". Essa é a história aparente do conto, e supõe-se que o elemento crucial, o motivo de o homem matar-se nessa estranha circunstância, seria infiltrado no enredo como história oculta, ou subtexto. Cabe ao leitor captar o subtexto. Cabe ao escritor dar-lhe pistas na dose exata para que a descoberta exija esforço e seja recompensadora na mesma medida. O suicídio deve ser surpreendente. Mas também deve ser inevitável. Como a atitude de Riabovitch no final de "O Beijo".
Por trás de todo conto há uma parábola, ou seja, a projeção de uma história em outra história. O conto aponta para outra narrativa que o extrapola, e que se encontra em grande parte na experiência de vida do leitor. Construir essa ponte faz parte da nossa natureza.
Narramos sem parar, seja na comunicação com os outros ou no domínio da introspecção. É o que fazemos ao procurar o "sentido" de "O Beijo", e é o que faz Riabovitch ao combinar detalhes de todas as moças presentes na mansão para criar sua musa particular e transformar o beijo acidental numa elaborada fantasia.
Eis o "nocaute" do conto: o autor cria condições para que uma potente parábola seja escrita com a participação do leitor, mas entrega a chave só no final. O desfecho é o começo.
Depois das conversas sobre subtexto na oficina, reli "O Beijo" e finalmente percebi como esse mecanismo entrava em ação. Por mais tocante e lindamente narrada que seja toda a história aparente de Riabovitch, e por mais que em seu desfecho ele sufoque a alegria momentânea, abdique da possibilidade de rever a mulher e se meta na cama, resignado, sentindo raiva de seu destino, a verdade é que ele toma a decisão correta. E o faz porque seu exaustivo exercício de fantasia o transformou numa pessoa melhor.
Tchekhov tenta esconder isso ao máximo, e chega a apelar, numa das últimas frases, quando põe seu personagem a observar a água do rio que passa pelo vilarejo: "Em maio ela tinha corrido para o grande rio, e do grande rio para o mar; então subiu em forma de vapor, virou chuva, e talvez a mesma água estivesse correndo agora de novo diante dos olhos de Riabovitch... Para quê? Por quê?".

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A oficina nos exigia um conto por semana. Narrar uma saga familiar em cinco linhas. Um episódio de dez segundos em dez páginas
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Releitura
E eu respondo, projetando a história que Tchekhov me deu numa outra que ele me convida a criar, com base no pouco que já sei do mundo: para que Riabovitch perceba que nesse retorno a água pode ser a mesma, mas ele próprio não. Ele mudou para sempre. Para que vá se deitar um pouco mais próximo de si mesmo, sem gastar suas energias inutilmente na tentativa de ser sociável e mulherengo como seus companheiros de batalhão, pois ele sabe faz tempo que é diferente de todos eles e já concluiu que um dia, cedo ou tarde, uma mulher passará por sua vida. Para que seja capaz de abrir mão. Podemos nos surpreender com sua decisão, mas ela é inevitável.
Não creio que uma oficina literária possa forjar um talento. Mas esse é um exemplo de como ela pode, sim, aprofundar e instrumentalizar a relação de um possível autor com as narrativas que lê e escreve.
Uma lição da oficina me levou a uma releitura definitiva (para mim, é claro) de um dos contos que haviam marcado minha adolescência. Encontrei palavras e conceitos adequados para explicar aspectos da ficção que minha experiência como leitor me levava a intuir, e isso foi um ponto de partida para pensar a literatura com um pouco mais de ambição.
Nunca escrevi tanto quanto naquele ano. A oficina nos exigia em média um conto por semana. Narrar uma saga familiar de cinco séculos em cinco linhas. Narrar um episódio de dez segundos em dez páginas.
Contar uma história apenas com descrições do cenário. Os textos eram analisados pelo professor e exaustivamente debatidos pelos alunos, que acumulavam cada vez mais ferramentas para a tarefa. Clichês, técnicas de diálogo, modalidades de narradores.
Ao longo de 1999, eu decidi que escrever seria minha prioridade. Passei 20 anos me distraindo disso, mas de repente, como no final de um bom conto, o subtexto veio à tona. Até então, sinceramente, eu não planejava nada disso. Surpreendente, mas inevitável.

Quem é Daniel Galera
DA REDAÇÃO

O escritor Daniel Galera nasceu em São Paulo, em 1979, e cresceu em Porto Alegre (RS). Publicou, em 2001, o volume de contos "Dentes Guardados" (ed. Livros do Mal).
Tem outros três livros publicados, todos pela Cia. das Letras. O romance "Até o Dia em que o Cão Morreu", adaptado para o cinema em 2007 por Beto Brant e Renato Ciasca, expõe os impasses na vida de um jovem. Escreveu também "Mãos de Cavalo" e "Cordilheira" -este último faz parte da coleção "Amores Expressos".

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